segunda-feira, novembro 07, 2005

Lavagem manual com seguro contra chuva

» A frase publicitária é do posto de gasolina próximo ao número zero da Avenida Sumaré. Sinais da recessão econômica, afinal os índices positivos estão sempre apenas nos papéis de jornal. O que não se faz hoje em dia em busca de clientes...

» Um filme com o mesmo diálogo (que dura cerca de 30 minutos) três vezes. "Flerte" é o nome da arte. Altamente não recomendável.

» Nunca imaginei na vida que veria uma Jazz Band "russa". Indescritível! Divertidíssimo! Nunca imaginei também que sairia dançando atrás de uma Jazz Band "russa"... hahaha

quinta-feira, novembro 03, 2005

Quando tudo parece perfeito...

Ando muito indecisa. Sempre mudei bastante de opinião sobre as pessoas, as relações, a importância de cada coisa, o que é ou não mais relevante. O problema é que ultimamente a intensidade e a rapidez de tudo isso está muito maior.

Sabe quando você encontrou o emprego que queria e diz “e daí”? Ou aquela pessoa que você se esforçou para reencontrar e acabou conseguindo, daí ninguém tinha o que falar? Ou aquela economia que você sempre quis fazer e finalmente conseguiu juntar o dinheiro, mas pra comprar o quê?

Sinto que tenho muitos planos, mas que nenhum deles é de verdade. Não que eu vá deixa-los pra trás não, ou que eles sejam fúteis. Muitas das coisas que quero fazer agora vou realmente fazer. Mas qual a importância delas de verdade para mim? Quantas vezes vou lembrar delas depois de concretizadas?

E apesar de pensar sobre isso, não me preocupo também. Acho que estou tranqüila demais. Talvez tenha me esforçado muito para aprender a não encanar com as coisas e estou o oposto do que sempre fui. E não tenho idéia se isso é melhor ou pior. Talvez seja indiferente. Ou talvez, na verdade, eu não tenha mudado em nada.

sexta-feira, outubro 28, 2005

Gotas de Clarice Lispector

"Esse esforço que farei agora por deixar subir à tona um sentido, qualquer que seja, esse esforço seria facilitado se eu fingisse escrever para alguém. Mas receio começar a compor para poder ser entendida pelo alguém imaginário, receio começar a "fazer" um sentido, com a mesma mansa loucura que até ontem era o meu modo sadio de caber no sistema. Terei de ter a coragem de usar um coração desprotegido e de ir falando para o nada e para o ninguém? - assim como uma criança pensa para o nada - e correr o risco de ser esmagada pelo acaso."

"Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador. Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada."

"Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doida. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos entender que não entendo."

"Suponho que me entender não é uma questão de inteligência e sim de sentir, de entrar em contato... Ou toca, ou não toca".

terça-feira, outubro 25, 2005

Sensações

"E o que é que ainda estão fazendo as crianças dentro do colégio?
Já que o sol está brilhando como nunca do lado de fora da sala de aula
E há uma única pétala vermelha na haste dessa rosa que continua bela, gritando..."

Hoje o céu paulistano amanheceu lindo, como nos mais belos dias das mais gostosas cidades litorâneas que já conheci. O sol forte, mas não quente o suficiente para matar o ventinho que soprava - como o das brisas marinhas.

Adoro dias de primavera. Eles sempre me fazem lembrar de tempos bons. E eles sempre são bons. Muito bons.

sexta-feira, outubro 21, 2005

Só por vício

Hoje pedi demissão de mais um emprego. Apesar do costume - sim, pedir demissão também vicia - sempre fico um tantinho mais feliz quando faço isso. Surge outra vez a possibilidade de mais tempo livre - para mim e para ficar com as pessoas de que gosto, a possibilidade de dormir até mais tarde nos dias em que tiver vontade, a possibilidade de curtir a piscina nos dias de sol que hão de vir!
Uma pontinha de mim sempre diz que eu gosto muito de começar coisas novas, mas gosto mais ainda de terminar com elas. Talvez por isso faça tantas coisas ao mesmo tempo, por ter a certeza de que elas acabam, de que coisas mais interessantes virão depois.
Da última vez em que pedi demissão fiz a melhor viagem da minha vida. O que será que vem agora?

segunda-feira, outubro 17, 2005

In my life

There are places I’ll remember
All my life though some have changed
Some forever not for better
Some have gone and some remain
All these places have their moments
With lovers and friends I still can recall
Some are dead and some are living
In my life I’ve loved them all

(The Beatles)

segunda-feira, outubro 03, 2005

Despedidas - terceira tomada

Entraram em casa com cuidado, em silêncio. Ainda era cedo e a luz que entrava pela janela em frente à escada clareava o ambiente deixando-o amarelecido. A menininha dormia no colo da mãe. Dormira desde o início da viagem.

O desconforto era geral. Ninguém sabia ao certo se devia falar, se podia falar, se queria pensar ou sentir mais alguma coisa. A mãe subiu a escada devagar, com a criança apoiada nos braços, para colocá-la na cama. Fechou as cortinas com cuidado e percebeu que ao se afastar a menininha abriu um pouco os olhinhos castanhos.

Já tinham se preparado bastante para o momento, mas esse é o tipo de acontecimento para o qual não adianta se preparar. E acredito também que é o tipo de acontecimento ao qual não se consegue acostumar.

Chegaram cedo ao orfanato e a menininha de pouco mais de um metro tinha acabado de almoçar. Macarrão com salsichas, seu prato preferido, aconselhou a assistente. Estava com uma blusinha azul e calça de moletom, sentadinha brincando com os amigos.

Todos começaram a se despedir. Para ela, provavelmente, mais um ritual desnecessário, mais uma despedida pela qual não pediu passar, mais um adeus para sempre.

Sua malinha era bem pequena: uma ou duas calças, algumas poucas blusinhas de verão e um moletom para o frio, além de uma sandália com a sola já gasta. Entregaram as coisinhas à mãe, que estava à porta com o resto da família.

- Vocês vão deixar ela assistir televisão? Deixa, porque ela gosta bastante de assistir televisão – lembrou seu amiguinho de cinco anos - três a mais do que a menininha -, que estava à espera da vez de se despedir.

Ela foi para o carro no colo da mãe, sem chorar ou reclamar. Não falou nada, nem um resmungo, nem uma palavra solta, nem um som de adeus. Como nas cenas de filme, todos ficaram à porta para dar um último tchau. E pediram para que não esquecêssemos de mandar notícias. O carro deu partida e ganhou a estrada. A menininha já dormia, tranqüilamente.

Bem Vindos

Estamos em uma pequena cidade sueca no início dos anos 1970. Amores, crenças e paixões colocados à prova a cada instante. Uma casa dividida entre cerca de dez pessoas com objetivos semelhantes - um casal que prega o amor livre, outro que acabou de se separar (a mulher virara lésbica), um homossexual, algumas crianças, outro casal com crenças mais fortes no anarquismo. Além de roupas características dos hippies, a casa não tinha televisão e lá eles não comiam carne. O clímax vem com a chegada de estranhos ao ambiente e uma série de transformações no pensamento de cada um daqueles que viviam sob o mesmo teto.

O filme é o Bem Vindos, do diretor sueco Lukas Moodysson, que assisti pela primeira vez em 2001, nos tempos de cursinho. Assisti novamente ontem e, apesar de gostar bastante, todo aquele cenário de contradição me pareceu mais familiar. É um ótimo retrato de uma sociedade quase distante da nossa. Recomendo!

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É contraditório como eu me afasto, mesmo sentindo falta, e me reaproximo, já não sentindo tanta falta, de muitas pessoas. Neste final de semana revi pessoas que já foram muito importantes alguns anos atrás, na minha vida de início de trabalho sério. Havia me esquecido do quanto algumas delas me incentivavam, em diversos assuntos. Mesmo timidamente e sem que elas percebessem, amadureci bastante com o convívio. Deu saudade, mesmo que não acompanhada de alguma vontade de voltar atrás.

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"Sempre haverá entre nós o amor. Sempre haverá entre nós o tempo. Sempre haverá entre nós as horas." É assim, ou mais ou menos assim, que termina e que começa o filme As Horas.

Também revi esse filme no final de semana e a primeira vez que assisti foi em um carnaval remoto, de 2003 ou 2004, não consigo lembrar.

Três mulheres aparentemente muito bem - com maridos ótimos, bem sucedidas na carreira, com vários amigos e bens materiais - têm crises pela falta de algo que não sabem o que é. Todas querem mudar a vida de alguma maneira, mas se culpam por jogar fora vidas aparentemente perfeitas.

Não consigo me prender a alguma vida, não consigo ainda criar raízes nem achar que as coisas devem continuar como estão. Tudo está acontecendo e mesmo assim não quero continuar com tudo isso por muito tempo. O que não significa, no entanto, que eu não esteja gostando de todas as novidades. Precisava aprender a me focar. Foco, Lúcia! Foco!!!

segunda-feira, setembro 26, 2005

Leis de compensações

Tenho me encantado com crianças. Com a ingenuidade delas. Com a sinceridade delas. As conversas quase adultas com minha irmãzinha me fazem melhor. Ela é uma das pessoas que me faz ter mais vontade de viver intensamente.

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Voltei ontem de Curitiba debaixo de chuva e sempre que volto de viagem me sinto melancólica. Cada despedida que vejo na rodoviária me faz lembrar de várias outras. Viajar vicia, a gente se acostuma fácil. Começo a achar que também nos acostumamos a despedidas. Isso já não me dá tanto medo.

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Vou começar a natação. E comprar um computador. E guardar dinheiro para fazer intercâmbio. E se os gnomos não atrapalharem, pôr em prática muitos outros planos. Alguém sabe onde dá pra comprar tempo a preços de banana?

sexta-feira, setembro 09, 2005

Efeito boomerang

http://www1.folha.uol.com.br/folha/ciencia/ult306u13691.shtml

Gritava roucamente como alguém que sofre de asma e não consegue, por alguns instantes, respirar. Gritava sem voz. Sussurrava um grito. Estava vermelho. Sufocava.

A professora abriu a porta correndo e gritou por socorro. Pediu para que uma das alunas chamasse rapidamente a diretora, para que enviassem uma ambulância à escola. Pedrinho precisava de ar puro urgentemente. Afastou todos os outros alunos e abriu os botões da camisa do garoto. Correu à sua bolsa e retirou um pequeno frasco de ar, espirrando todo o pouco resto que ainda estava dentro do frasco na boca dele. A tentativa era de que o pouco ar puro do frasco lhe reanimasse até a chegada dos médicos.


Eram cinco horas da manhã quando a mãe lhe acordou para ir ao colégio. Ela estava com um ar triste, um pouco cansada. Desanimada, talvez.

- Hoje vamos mais cedo, querido. A mamãe não conseguiu pegar as máscaras de ar lá no postinho público; disseram que não tinha mais, que só vai chegar daqui uma semana... Vamos mais cedo pra não pegar tanta poluição. Toma, põe sua camisa.

Pegou Pedrinho pela mão e saíram de casa rapidamente. O café tinha sido pouco, então era bom insinuar uma pressa para que a barriga não percebesse a falta e começasse a fazer barulho tão cedo. Havia poucas pessoas na rua e a o clima ficava melhor antes do sol nascer. Não corriam tanto risco por andar sem protetor solar nesse horário, nem de sair sem as botas anti-calor, que não tinham mais. As de Pedrinho já estavam três números menores do que ele calçava.

- Querido, espera a mamãe aqui na hora da saída, tá? O calor vai estar maior e a poluição também. Vou trazer uns paninhos úmidos pra gente ir colocando no nariz até chegar em casa. E vou ver também se nenhuma vizinha tem alguma máscara de ar puro guardada pra te emprestar.

- E a máscara pra você, mamãe?

- Ai, lindo, não se preocupa com a mamãe não, tá? A mamãe já é grande, olha só. E a mamãe também tá mais acostumada com a poluição. Fica com Deus, querido.

Marina voltou para casa correndo. O solo estava quente demais para suportar. Não podia caminhar sem nenhum protetor para os pés. Ficou triste pelo filho, lembrando de quando era criança e podia brincar na rua, se jogar no chão, respirar de graça e sem se preocupar. Culpava o governo por não oferecer as máscaras contra a poluição em número suficiente; culpava o governo por não ter estoque de botas anti-calor para todos que não tinham dinheiro para comprá-las; culpava o governo por não recarregarem com ar puro as máscaras das crianças nas escolas públicas, como era feito nas escolas de elite. Mas tudo isso não lhe fazia se sentir menos culpada por não poder dar a Pedrinho ao menos ar puro, ar puro para que ele pudesse respirar sem prejuízos à sua saúde.


- A ambulância chegou – gritaram ao longe.

O menino estava desacordado. O pequeno estoque de ar puro que a professora lhe ofereceu não foi suficiente para que Pedrinho não desmaiasse, por não conseguir respirar o ar sem as gotas de purificação que a máscara proporciona.

A diretora carregou o menino ao encontro dos médicos, que também corriam. Todos os alunos estavam juntos, quietinhos, de mãozinhas dadas, olhando para a cena que não entendiam bem. A professora os consolava, sem ao menos se consolar também de verdade. Ela ainda lembrava que quando era criança se falava muito do Protocolo de Kyoto, aquele acordo assinado por alguns países para a diminuição das emissões de gás carbônico e do efeito-estufa global. Naquela época alguns pesquisadores também descobriram que o carbono armazenado no solo começara a ser liberado pela ação mais intensa dos micróbios existentes no solo. E esses micróbios só aceleraram sua atividade por causa do aumento da temperatura dos solos, causada pelo efeito-estufa. Naquela época, tudo isso parecia algo muito distante. Para que se importar com algo que só mudaria a vida do planeta depois de alguns anos? Talvez nem estivesse viva até lá... Era um tempo tão distante...

Tirou sua máscara do rosto. Pensou nas crianças que estudavam em colégios de elite e que tinham intervalos para poderem encher suas máscaras com ar puro. O carregamento custava caro, mas em colégios de elite as recargas diárias eram incluídas na mensalidade.


Marina chegara em casa há pouco. As solas dos pés estavam bastante queimadas pelo calor do solo que nesse verão era quase insuportável. Há tempos não sentia o clima tão ruim. Molhou vários paninhos e começou a molhar toda a casa, para tentar de alguma forma amenizar a poluição que respirava sem a proteção das máscaras com reserva de ar puro.

Ligou o fogo para preparar o almoço quando bateram à porta. Esmurraram, gritaram, não simplesmente bateram à porta. Que ela fosse pegar o filho no hospital. Ele tivera uma crise. Já estava melhor e precisava desocupar o espaço. Outros esperavam pelo lugar dele.

Seus pés ardiam, mas saiu correndo para o hospital. Ficava há oito quadras de seu casebre, uma reta só, sem árvores nem sombras para refrescar o caminho. Encontrou o filho à espera na porta da enfermaria, sentadinho com os braços cruzados e a cabeça debruçada entre as pernas, vigiando com medo os passantes. Pegou-o no colo em um único impulso e conferiu se estava tudo bem. Sentou-se a seu lado. Não podiam correr o risco de voltar para casa sem as máscaras, em pleno meio-dia. O ar era praticamente irrespirável. Ficariam abrigados no hospital, onde o ar era purificado.

Colocou o filho deitado com a cabecinha em seu colo. Disse que lhe contaria histórias para dormir, pois ficariam ali até a noite chegar. Fez-lhe carinho na cabeça, com lágrimas nos olhos. Ele pediu um abraço, disse que ela era a melhor mãe do mundo e adormeceu.

quinta-feira, setembro 01, 2005

De lembranças

Recordava ainda muito bem da última conversa, no corredor. Ela carregando sua mochila enorme com cuidado para não acordar ninguém e ele, ainda despertando, com uma pequena garrafa de água nas mãos e uma toalha pendurada no ombro.

Trocaram meia dúzia de sussurros como velhos, muito velhos e íntimos amigos fazem, como se os dois tivessem a certeza de que se veriam novamente à noite, quando contariam detalhes do dia e dariam risadas tomando uma cerveja. Ela se despediu e ele voltou para o dormitório, para descansar da noite mal dormida. Ela esqueceu de pedir o contato dele. Ele lembrou de lhe oferecer uns doces para comer durante a viagem.

- Tchau, boa sorte.

- Brigada, pra você também, e boa viagem. Espero que sua dor de cabeça melhore.

Ela saiu e foi pegar o ônibus, não queria se atrasar.


- Ei, o que você tá fazendo com a perna esticada?

Ela não gostava de pés, mas queria tirar uma foto do seu. Era a última foto do filme, precisava queimar de alguma forma. Foi até à porta do quarto e fechou a pequena vidraça para que ninguém no corredor lhe atrapalhasse, mas ele entrou sem ela perceber. E estava do lado da cama dele... O que poderia inventar? Corou. Não conseguia pensar em nada.

- Vou tirar uma foto do quarto, para acabar com o filme.

Ele não se convenceu. Sorriu um sorriso esboçado que aos poucos se transformava no sorriso mais gostoso que ela conseguiu sentir. Convenceu-a a tirar uma foto sua. Duas, três. Era como brincadeira de criança, cada um esperando o outro se distrair para tirar mais uma foto, e outra, e mais outra. A brincadeira foi até tarde. E os sorrisos tão gostosos pareciam cada vez mais antigos, mais sinceros, mais conhecidos. Só paravam quando outro hóspede do mesmo quarto entrava para pegar alguma coisa.


Teve que abrir o guarda-chuva. A cidade em que nunca chovia amanhecera nublada e as pequenas gotas que escorriam pelo seu corpo lhe traziam uma tristeza pequenininha que aparecia escondida não sabia onde.

Pessoas borbulhavam nas ruas, onde o vai-e-vem frenético dos ônibus - que ali tinham uma ordem caótica - ilustrava seu caminho até a estação central. Ia admirando cada palavra nas placas do comércio, cada novidade, cada sentimentozinho diferente. Era a primeira despedida de todo aquele desconhecido e alguma coisa talvez sem importância ia mudando dentro dela.


Trocaram segredos que só a noite também escutou, em uma língua que só os dois podiam decifrar e que ninguém mais escutaria. Ela não costumava falar sobre o que sentia, nem sobre seus sonhos com qualquer pessoa. Demorava para confiar em alguém, mas sentia que toda a desconfiança ficara para as outras pessoas. Com ele não tinha medo, nem vergonha, nem mesmo insegurança. Todas as palavras pareciam poucas, de tanto que tinham para segredar.

As histórias dele a encantavam, assim como sua voz, seu toque, tudo que conheciam, sentiam e tinham de igual. E todas as diferenças. Sentia uma necessidade grande de tomar para si cada história que estava ali no ar, cada suspiro, cada sorriso. Sentia uma necessidade grande de guardar aquilo tudo como seu, como se fosse só seu.

Perguntou novamente o nome dele, mas ele outra vez não falou por inteiro. E de que importava também? Sabia o início, a interpretação, a tradução. O resto pertencia a um mundo que não era dela, a um sonho que o dia que vinha vindo faria ela não encontrar mais.


A chuva apertou e a menina, correndo, se escondeu embaixo da plataforma. Já estava quase na hora. Olhou bem atentamente para a cidade, de todos os lados, prometendo um dia voltar lá. Sentia-se bem, diferente, mas tinha uma vontade apertadinha de chorar. Ele agora era apenas uma lembrança e um nome que ela não sabia nem qual era de verdade, guardado num tempo já quase distante. Num tempo tão bom.

segunda-feira, agosto 22, 2005

Em outros tempos

http://noticias.terra.com.br/popular/interna/0,,OI638068-EI1140,00.html

Sentou-se com a neta para almoçar. Olharam o cardápio.

– Eu quero de camarão, disse a menininha ao garçom.

– E eu quero duas bolas de bacalhau, por favor – pediu a velha.

O restaurante estava lotado. Com o calor, mais pessoas passavam a apreciar aquele tipo de culinária já consolidado em praticamente todo o mundo.

– Sabe, querida, quando a vovó tinha a sua idade, ninguém comia sorvete no almoço. A bisa não deixava não. Eu lembro até hoje como mentia pra bisa dizendo que tinha almoçado arroz e feijão quando tinha, na verdade, tomado sorvete de chocolate. Ai, outras épocas. No tempo da vovó sorvete só era doce, sabia? Não dá nem pra imaginar, né?

A novidade já era antiga demais para que a menininha se surpreendesse com o que a avó acabara de contar. E Lúcia sabia disso. Não podia, no entanto, esquecer do dia em que viu a placa na sorveteria ao lado de sua casa anunciando que agora também podiam comer sorvetes salgados. Fora no ano de 2005. No verão. E naquela época a consistência ainda era bem diferente, mais cremoso, mais macio. E o preço também mudara bastante: só para os ricos, dizia sua mãe.

Não se cansava de lembrar todas as vezes em que amigos lhe perguntavam como conseguia comer sorvete de chocolate no lugar do almoço. Por que nunca pensara em responder “porque ainda não inventaram sorvete salgado, com gosto de almoço”?

Sorriu discretamente, com a idéia tão tardia. Será que seus antigos amigos agora também comiam sorvete de almoço?

– O de bacalhau – disse o garçom.

– Para mim, por favor – olhou Lúcia.

Almoçaram sem pressa e o tempo passou em silêncio. Pediram arroz doce de sobremesa.

quinta-feira, agosto 04, 2005

Aniversário

Hoje eu sinto que cresci bastante
hoje eu sinto que estou muito grande
sinto mesmo que sou um gigante
do tamanho de um elefante
é que hoje é meu aniversário
e quando chega o meu aniversário
eu me sinto bem maior, bem maior
bem maior, bem maior do que eu era antes.

(Aniversário, Paulo Tatit e Luiz Tatit)

quarta-feira, agosto 03, 2005

A vaca

http://diversao.terra.com.br/interna/0,,OI614813-EI3615,00.html

Chegou em casa eufórico. Todos estavam almoçando e adorariam a surpresa. Pediu que o carregador entrasse com cuidado, pois a vaca era feita de fibra de vidro, e ele não queria ver nenhuma lasquinha.

A casa era ampla e antiga, com uma porta de madeira de mais de três metros de altura. Logo na entrada havia um velho tapete vermelho e quadros com molduras douradas, colocados cuidadosamente separados por toda a extensão do corredor, o que dava ao ambiente um ar pouco descontraído.

- Coloque a vaca aqui, por favor – apontou para o carregador, indicando o final do corredor, de onde se avistava uma grande sala de estar, com um piano de cauda ao centro.

A esposa e a mãe, que almoçavam, saíram depressa do cômodo e correram para a sala, tentando descobrir o porquê da agitação que se instaurara na casa sempre tranqüila e silenciosa. Arrumando os cabelos presos em um coque e a longa saia azul que levantara um pouco com a corrida, Helena não entendeu o que acontecia quando viu o carregador se afastando da sala e avistou aquele bicho colorido. Um pouco atrás, apreciando o objeto com cautela que só quem já ensinou muitas gerações pode ter, a mãe de Bento estava admirada, e cansada pela corrida que ensaiara ao sair da cozinha.

- E então, o que acharam desta maravilha? – perguntou Bento sem se virar para as mulheres, acariciando sua aquisição.

A vaca era branca, do tamanho de um animal natural, com desenhos feitos à mão, por artistas russos. E Bento a adquirira em um leilão, uma perfeita obra de caridade, enfatizava. Todo o dinheiro arrecadado pela venda do objeto seria revertido para a instituição de caridade do município.

Helena ficou constrangida. Não deveria contrariar as vontades do marido, mas que excentricidade aquela! Uma vaca? E ao lado de seu lindo piano? Tentou dissuadir Bento da vontade de deixar aquele objeto na sala. Podiam devolver, pois dessa forma a instituição de caridade poderia então vendê-la novamente e mais pessoas seriam beneficiadas pela tamanha bondade do marido.

- De jeito nenhum. Não vou vendê-la por nada. E além do mais, todos em Paris já falam desta maravilha aqui. Você verá como todas as suas amigas comentarão com inveja sobre nossa bela aquisição.

Dona Querela, mãe de Bento, não comentara nada, mas gostara da vaca. Simpatizava com ela. E começou a admirá-la cada vez mais.

Um dia dona Querela avisou, à hora do almoço, que algo muito ruim aconteceria, alguém levaria grande parte da riqueza de toda a família. Helena e Bento se entreolharam e temeram pela saúde mental de Querela. Agora dera para inventar coisas...

À noite, quando se preparavam para o jantar, ouviram um grande alvoroço à porta da casa.

- Ei, ei, abram rápido! Seu Bento! Dona Helena! Corram! – gritava um dos empregados da grande casa.

Uma desgraça tinha acontecido há poucas horas. O caminhão que levava toda a produção de batatas da fazenda nos últimos quatro meses capotara na estrada. Toda a mercadoria fora saqueada pelos homens locais e o motorista se ferira gravemente.

Novamente Bento e Helena se entreolharam. Dona Querela espiava ao longe, melancólica, triste. Afastou-se e foi à sala, sentou-se ao lado da vaca, que agora chamava carinhosamente de Cândida. Ela já sabia disso, a vaca lhe avisara de tudo que ia acontecer. E fez-lhe um pedido, porque também sabia que Cândida poderia realizá-lo. Pagaria o preço exigido, mas queria que Bento e Helena tivessem de volta o sustento para os próximos meses. Não podiam perder tão enorme quantia de dinheiro, não teriam nem como comer até a próxima safra, que deveria demorar ainda muito. Acertou o acordo. Seria na manhã seguinte.

Naquele frio domingo de junho dona Querela acordou mais triste. O filho pouco notou, devido aos problemas do dia anterior e à preocupação para acertar de alguma forma a situação em que se encontravam. Helena ficou na cama até tarde e esqueceu-se de fazer o almoço para a família.

Dona Querela arrastou-se vagarosamente até a sala, apreciando cada retrato pendurado na parede do corredor, lembrando pessoas que já haviam caminhado por ali também lentamente. Aproximou-se de Cândida, confirmou que já estava pronta. Ouviu a campainha. Um banqueiro da cidade se solidarizara e trouxera auxílio para os próximos meses. Levaria a vaca como garantia do pagamento. O pacto estava cumprido. Cândida fizera sua parte e chegara a hora dela. Dona Querela ainda caminhou lentamente até o sofá e acomodou-se ao lado do piano, imaginando seu retrato ao lado direito do corredor.

Nas férias, Bento e Helena foram para Paris.

terça-feira, agosto 02, 2005

De alguma poesia...

Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias, espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas em ênfase.

Vomitar este tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam pra casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens macias avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

(A Flor e a Náusea, Carlos Drummond de Andrade)

segunda-feira, agosto 01, 2005

Guerra

Pessoas correndo
Homens-bomba
caindo

Olhares dispersos
Confusos
tristes

Palavras sinistras
Falsas
palavras?

Barulhos constantes
Intensos
voando

Fogo, fumaça
Destruição
morte

Choro, dor
Desilusão
vida?

terça-feira, julho 26, 2005

Sobre o olhar

Odeio os chats de conversação por computador. É como se me colocassem diante de uma pessoa para que eu conversasse com ela de olhos vendados, sem sequer ouvir sua voz... E me dessem de consolo bilhetinhos com suas frases... Não, ainda não cheguei a esse ponto de estupidificação mental... Não posso imaginar conversar com alguém sem ver seus olhos, que para mim são muito mais do que órgãos de visão. São órgãos de imersão... São como o inverso do periscópio, tal qual os jogos de lentes cruzadas e diagonais de um microscópio, que me permitem entrar na invisibilidade de um tecido, de um plasma, de microfatia dérmica. Pelos olhos eu vejo em você uma tristeza interior, uma melancolia mesclada com uma vontade terna mas impotente de se exprimir; pelos olhos eu vejo nessa outra pessoa uma ternura solitária, um silêncio interior brando, uma resistência às investidas de todos aqueles que querem torná-la igual aos outros... Pelos olhos eu vejo, em mais essa outra pessoa, as transformações de seu ser, os mesmos olhos que tempos atrás passavam um orgulho vaidoso, indiferente, até mesmo arrogante, hoje denunciam uma incerteza, um olhar inseguro de quem sofreu, se dobrou, teve de refazer a vida...

(Odeio a Internet, de Ciro Marcondes Filho - Revista USP)

quarta-feira, julho 20, 2005

De excentricidades...

http://br.news.yahoo.com/050720/5/vux3.html

O bule gigante entrara em ebulição. Nunca pensara que a cena fosse possível, nem que alguém fosse capaz de tamanha covardia e maldade. Pedro se convertera à religião do bule gigante há cinco anos, quando seu melhor amigo foi curado de fortes dores no peito pela ação terapêutica do templo, em forma de bule.

Na Malásia eram conhecidas as formas orientais de tratamento de doenças melhor do que em qualquer lugar. Todos os conhecimentos do mundo oriental na arte de tratar o corpo e a mente de formas naturais haviam se convergido para aquela região do mundo. Isso era o que sempre ouvia dizer, mas o que via na prática eram grandes amigos seus morrendo sem atendimento ou sem um medicamento que fosse capaz de lhes tirar as dores da vida.

A primeira vez que presenciou alguma transformação verdadeira foi quando seu melhor amigo se viu curado, definitivamente curado, daquela dor aguda no peito, crônica pelos anos de existência e de sofrimento proporcionado. E tudo graças à ação benéfica do bule gigante.

A cátedra fora criada alguns anos antes, no centro da Malásia, cerca de sua casa, em meio às frondosas árvores e à vista de altas montanhas que rodeavam o lugar. Pedro sempre achara o local muito diferente, colorido, lhe encantava. O bule era pintado à mão, como um artesanato daqueles usados pelas donas de casa mais tradicionais para preparar o chá da tarde do marido que assiste à televisão no domingo à tarde. Era principalmente de cores quentes, com recortes geométricos em vermelho e amarelo, tendo como coloração principal um marrom bem clarinho.

Apesar da curiosidade, nunca havia entrado na cátedra, nem contara a ninguém sobre sua admiração pelo prédio escultural. Mas seu melhor amigo percebia o que lhe passava na mente. E era o primeiro a desconfiar. Nunca levaria a sério uma religião que tinha como templo e adorava um bule gigante com poderes curadores.

Apostaram. Nada aliviava as dores no peito de Thiago. Se o bule funcionasse, se converteriam àquela doutrina. A aposta iria completar cinco anos.

Os dois estavam juntos apreciando com ardência as chamas que consumiam o bule. As cores quentes e o calor do incêndio lhes enchiam o coração de mágoa, de ódio, de vingança. Ouviam burburinhos e risadas à volta. Poucos se importavam com a destruição de tão importante patrimônio da humanidade. Sim, porque qualquer pessoa, daquelas que riam às gargalhadas poderia se beneficiar dos efeitos curadores do bule. Pobres coitados, pensava Pedro.

Os bombeiros demoraram a chegar. As chamas já consumiam a semi floresta que rodeava a cátedra. Da casa de Pedro se sentia o calor e a fumaça elevada pelos ventos. No ar, só se sentia o cheiro de destruição. Tudo estava preto.

terça-feira, julho 12, 2005

Mare Orientale

O que dizer?

Que teu cheiro continuaria em minhas mãos
Se não houvesse água e necessidade de tomar banho?
Que teu sorriso interminável continua na memória,
Resistindo contra o esquecimento resultante de lugares à meia-luz?
Nem insistirei em bater-me com tal limitação, pois nada
Do que dissesse alçaria vôo a ponto de superar lembranças:
Dias de chuva, seguidos dum domingo luminoso, do cheiro
Da carne, sons sonhados nos ouvidos toda noite.
A sensação de novamente descobrir um continente,
O riso para sempre perdido num canto de lábio.
Penas de pássaro em tua nuca, e pés, e covas.
Covas sobre a anca inesquecível.
Sem que nuncacabe.
Nuncacabe.

O que dizer?

(de Joca Reiners Terron)

sexta-feira, julho 01, 2005

Na escuridão, perguntei se ele sabia o quanto o amava.
(Frase de Bertolucci escrita para Marlon Brando)

A discussão era interminável e recorrente. Sabia que sempre que algo não andava bem ela seria o alvo das brigas e sofreria com os gritos e palavras ofensivas que os dois bradavam dentro de quatro paredes. Chorava compulsivamente, berrava. Colocou-se em frente à porta para que ele não pudesse sair. Todos na casa choravam, ela sabia. Mas não podia conter-se. A situação já era irremediável.

Pensava em se matar, em quebrar todos os vidros da casa, chamar os vizinhos que espiavam pelas frestas de suas janelas para gritar que aquilo não importava a ninguém e que todos fossem à merda. Tinha ódio das pessoas, tinha ódio das relações que conseguia estabelecer com as pessoas. Amava muito, talvez não soubesse expressar que amava, talvez nem amasse de verdade, talvez não amasse nem a si mesma.

Agora estavam deitados e ela pensava em tudo que haviam dito. O quarto era amplo, uma pequena corrente de ar lhe arrepiava em intervalos pequenos, uma luz escassa lhe permitia ver suas sombras na parede também escura. Sentia um aperto no peito, daqueles que lhe angustiavam quando tinha vontade de chorar. Agora não era mais raiva, mas um sentimento de culpa – pelos dois – de não saber parar quando chegara a hora, de dizer tudo que vinha à boca sem antes pensar em não magoar, de esconder o que sentia verdadeiramente.

Ele dormia, ela sentia sua respiração perto ao peito. Queria acordá-lo, mas seu sono parecia perene, tranqüilo, diferente da pessoa com quem acabara de discutir. Lembrou da vez em que ela dormia e ele lhe deu flores; colocou o presente ao seu lado na cama e lhe acordou com um beijo. Ela se assustara, mas não recebia provas de carinho costumeiramente. Amava-o.
Sua respiração a excitava, olhou mais uma vez para ele, tinha certeza de que estava dormindo. Acordou-o. As luzes que lhe permitiam ver suas sombras na parede tinham se enfraquecido. Na escuridão, perguntou se ele sabia o quanto o amava.

quinta-feira, junho 30, 2005

Ensaio - primeira parte

Sentaram-se em torno da mesa para apresentar o discurso criado. Era claro o nervosismo. Encontravam-se ali jornalistas, consultores políticos, economistas, sociólogos e, claro, a cúpula do partido. A candidatura estava mal e os índices de aceitação pela população da zona rural tinham despencado. Primeiro, explicaram quais os pontos levados em consideração para montar o discurso: as pesquisas diziam que os eleitores queriam um candidato que lhes assegurasse emprego. Para todos, alguns milhões. Eles se entreolharam. O clima de tensão aumentava, sabiam que era impossível garantir trabalho a todas aquelas pessoas. Passaram à leitura do texto. Ótima argumentação, boa dicção, perfeito para convencer os eleitores. Aplaudiram. A eleição estava ganha certamente. Mas e os empregos, como fariam para conseguir tantas vagas depois da votação? Alguém sussurra do canto da mesa: “nisso pensamos depois. É só criar outro discurso”.

Os discursos políticos dos candidatos na atualidade, muitas vezes, longe de refletir a ideologia dos partidos e suas plataformas de governo, buscam acima de tudo interpretar os desejos da população, tentando convencê-la de que concretizarão suas aspirações. Para isso utilizam, entre outras técnicas, dados de pesquisas de opinião que avaliam quais as principais expectativas do eleitorado.

Segundo Eugênia Sarah Paesani, socióloga especializada em pesquisas de marketing e de comunicação, a prática é muito freqüente. “Se não há coincidência entre o que está escrito no discurso e o que representa a posição do político, utilizar a pesquisa apenas para ver o que a população quer e apresentar essa informação como plataforma do político, sem ser sua ideologia, é enganação”, afirma.

“Hoje, com o advento das pesquisas eleitorais, você consegue informações certas sobre o que a população precisa. Assim você tem condições de escrever um discurso que alcance o que a população espera ouvir”, esclarece Carlos Manhanelli, presidente da Associação Brasileira de Consultores Políticos.

A manipulação de resultados de pesquisas é perigosa principalmente para a população menos esclarecida e, por esse motivo, mais facilmente influenciada. “Na sociedade contemporânea o poder já não se exerce pela repressão, mas pela manipulação mental dos grupos dominados, de tal forma que estes aceitam as relações de poder como algo natural”, explica José Matias Pereira, professor de Ciência Política da Universidade de Brasília.

segunda-feira, junho 20, 2005

Nada mal

Tanta gente feliz por aí e eu sempre correndo atrás dos mesmos erros. Pra que prometer se eu sempre descumpro minhas próprias promessas? É só prometer e pronto! Alguma força sobrenatural me faz querer o que havia prometido não querer.

Isso deve ter alguma explicação científica. Qualquer dia vão provar, em alguma daquelas teses de universidades inglesas, que você só promete a si mesmo o que sabe que não vai cumprir. Tenho certeza de que isso é controlado por genes. Quem sabe não serei eu mesma que publicarei, na BBC Brasil – meu sonho de consumo – uma matéria dizendo que os genes que controlam nosso desejo de prometer algo nos aumentam o desejo por essas mesmas coisas.

Já sei! Prometo que nunca mais prometo nada a mim mesma.

E que intenso é esse desejo de não levar a sério o que prometi com tanta ênfase há tão pouco tempo. Parece que não me preocupo com o que vou sentir depois, que vivo apenas o momento. Sei que não é assim. O mundo não é assim. Tudo que acontece modifica, alegra, irrita, não passa incólume. E sei que descumprir promessas pode ser perigoso. Nunca tive tanta vontade de arriscar! Prometo que vou saber quando parar!

domingo, junho 19, 2005

Segredo

- Segredo, juro.

- Jura mesmo?

- Ai, ai, ai. Já não prometi? É segredo. Pode ficar tranqüila, vai. Fala!

A experiência era interessante. Ninguém saberia quem era o dono daquelas histórias de paixão, de medo, de aventura. Clara se sentia assim mais calma, como limpa de uma vida que escondera por tanto tempo. Tantos anos pensando a quem revelar aquelas ações tão repugnadas pela sociedade – pelo menos acreditava que a sociedade repugnaria tudo aquilo – e em algumas horas se sentia tão mais bonita, tão pronta para ela mesma.

Estava com uma saia preta rodada e um cachecol que naquele dia lhe servia como xale. Cerca de cinco centímetros mais alta do que era, por conta do salto. Seu rosto estava magnífico, resplandecente, e seus olhos brilhavam com um toque suave da água salgada que lhe borrava o lápis. Estava linda, como poucas vezes em toda a sua vida. E sabia que agora tinha para quem mostrar toda a sua beleza.

Pensou mais uma vez no que ia dizer, para não faltar nenhum detalhe na hora em que decidisse revelar tudo. Retocou a maquiagem e percebeu que chegara a hora. Colocou o espelho um pouco curvado no chão, frio, como estava frio. Sentou-se e reclinou um pouco a cabeça, porque assim ficava mais bonita. Sentiu uma gota vinda de seus olhos e que caíra sobre a saia. Chorou. Era a primeira vez que conseguia revelar a si mesma o que teimava tanto em não acreditar. Não podia mais... Chega! É segredo!

terça-feira, junho 07, 2005

Na hora de tirar a maquiagem

Guardou com cuidado as roupas no armário já roto, remoído por cupins e pintado com ar de luxo. Há anos repetia a ação, mas com a mesma obstinação com que cuidara dos trajes pela primeira vez. Sacudia-os e tinha atenção para que nenhuma parte ficasse amassada. Um cheiro bom de passado invadia o cômodo cada vez que abria o armário. Daqueles cheiros de madeira antiga, que parecem guardar parte da vida.

Sentou-se na poltrona, que nunca antes tinha sentido sua presença. Era só para os outros... Mas precisava se dar esse luxo uma única vez e esse era o dia. Sentiu o cheiro da fumaça dos cigarros e o barulho dos últimos clientes que pagavam suas contas. Colocou na boca um final de cigarro esquecido em cima da penteadeira, para passar o tempo. Deliciou-se com as formas que podia produzir no ar. Ele podia!

Os músicos já tinham se despedido. Guardava agora o traje do saxofonista, seu preferido. A serenidade da roupa contrastava com o cômodo repleto de luzes coloridas, de cartazes de apresentações antigas, dos sapatos reluzentes usados pelas dançarinas que também se utilizavam daquele camarim. O carpete era o mesmo de quando começara a trabalhar lá e as marcas de bebida estampadas na lã mostravam um pouco da sua história. O espelho gasto refletia sua cara também marcada pela idade, a mesma que consumia o ambiente.

Não podia guardar o traje outra vez. Não era isso que queria. Faltava-lhe coragem; por que nunca faria o que sempre sonhou? Deu mais uma tragada e percebeu que os clientes já haviam saído. Ouvia o ruído dos carros e das conversas do lado de fora. Sentou-se mais uma vez na poltrona. Colocara o traje na cadeira à sua frente, ao lado da penteadeira. Sentiu aquele instante como único.

Ouviu passos, que não distinguia de onde partiam. Pulou de repente ao sentir que batiam à porta e jogou o traje para dentro do armário.

- Ei, João, você ainda está aí?

Não esquecera de apagar as luzes. Orgulhava-se disso. Trancara a porta e sabia que não perceberiam sua presença se esperasse em silêncio por mais alguns instantes. Paulo gostava de ir cedo para casa e não voltaria para bater à porta outra vez.

Recompôs sua expressão fatigada e sabia que agora era a hora. Os trajes eram seus, o camarim era seu, o espelho, os sapatos, a poltrona... ah, a poltrona; tudo era só seu. Jogou a bituca de cigarro no chão. Seria mais uma marca na lã já corroída do carpete. Mas essa ninguém veria. Tinha certeza disso.

Pegou o isqueiro. Não encontrou outro cigarro. Queria mais um trago pra lhe dar coragem. Pegou cuidadosamente o traje do saxofonista. Era seu número, sempre soube disso. Ficaria perfeito. Acendeu o isqueiro e cuidadosamente, como sempre cuidara de tudo aquilo que nunca fora seu, aproximou a chama do traje. O colorido do camarim ficou superficial com as chamas, que consumiam uma vida inteira. Ainda com cuidado colocou o traje na poltrona, os dois agora de um vermelho intenso. Sentou-se na cadeira em frente à penteadeira. E começou a tirar a maquiagem.