quinta-feira, junho 30, 2005

Ensaio - primeira parte

Sentaram-se em torno da mesa para apresentar o discurso criado. Era claro o nervosismo. Encontravam-se ali jornalistas, consultores políticos, economistas, sociólogos e, claro, a cúpula do partido. A candidatura estava mal e os índices de aceitação pela população da zona rural tinham despencado. Primeiro, explicaram quais os pontos levados em consideração para montar o discurso: as pesquisas diziam que os eleitores queriam um candidato que lhes assegurasse emprego. Para todos, alguns milhões. Eles se entreolharam. O clima de tensão aumentava, sabiam que era impossível garantir trabalho a todas aquelas pessoas. Passaram à leitura do texto. Ótima argumentação, boa dicção, perfeito para convencer os eleitores. Aplaudiram. A eleição estava ganha certamente. Mas e os empregos, como fariam para conseguir tantas vagas depois da votação? Alguém sussurra do canto da mesa: “nisso pensamos depois. É só criar outro discurso”.

Os discursos políticos dos candidatos na atualidade, muitas vezes, longe de refletir a ideologia dos partidos e suas plataformas de governo, buscam acima de tudo interpretar os desejos da população, tentando convencê-la de que concretizarão suas aspirações. Para isso utilizam, entre outras técnicas, dados de pesquisas de opinião que avaliam quais as principais expectativas do eleitorado.

Segundo Eugênia Sarah Paesani, socióloga especializada em pesquisas de marketing e de comunicação, a prática é muito freqüente. “Se não há coincidência entre o que está escrito no discurso e o que representa a posição do político, utilizar a pesquisa apenas para ver o que a população quer e apresentar essa informação como plataforma do político, sem ser sua ideologia, é enganação”, afirma.

“Hoje, com o advento das pesquisas eleitorais, você consegue informações certas sobre o que a população precisa. Assim você tem condições de escrever um discurso que alcance o que a população espera ouvir”, esclarece Carlos Manhanelli, presidente da Associação Brasileira de Consultores Políticos.

A manipulação de resultados de pesquisas é perigosa principalmente para a população menos esclarecida e, por esse motivo, mais facilmente influenciada. “Na sociedade contemporânea o poder já não se exerce pela repressão, mas pela manipulação mental dos grupos dominados, de tal forma que estes aceitam as relações de poder como algo natural”, explica José Matias Pereira, professor de Ciência Política da Universidade de Brasília.

segunda-feira, junho 20, 2005

Nada mal

Tanta gente feliz por aí e eu sempre correndo atrás dos mesmos erros. Pra que prometer se eu sempre descumpro minhas próprias promessas? É só prometer e pronto! Alguma força sobrenatural me faz querer o que havia prometido não querer.

Isso deve ter alguma explicação científica. Qualquer dia vão provar, em alguma daquelas teses de universidades inglesas, que você só promete a si mesmo o que sabe que não vai cumprir. Tenho certeza de que isso é controlado por genes. Quem sabe não serei eu mesma que publicarei, na BBC Brasil – meu sonho de consumo – uma matéria dizendo que os genes que controlam nosso desejo de prometer algo nos aumentam o desejo por essas mesmas coisas.

Já sei! Prometo que nunca mais prometo nada a mim mesma.

E que intenso é esse desejo de não levar a sério o que prometi com tanta ênfase há tão pouco tempo. Parece que não me preocupo com o que vou sentir depois, que vivo apenas o momento. Sei que não é assim. O mundo não é assim. Tudo que acontece modifica, alegra, irrita, não passa incólume. E sei que descumprir promessas pode ser perigoso. Nunca tive tanta vontade de arriscar! Prometo que vou saber quando parar!

domingo, junho 19, 2005

Segredo

- Segredo, juro.

- Jura mesmo?

- Ai, ai, ai. Já não prometi? É segredo. Pode ficar tranqüila, vai. Fala!

A experiência era interessante. Ninguém saberia quem era o dono daquelas histórias de paixão, de medo, de aventura. Clara se sentia assim mais calma, como limpa de uma vida que escondera por tanto tempo. Tantos anos pensando a quem revelar aquelas ações tão repugnadas pela sociedade – pelo menos acreditava que a sociedade repugnaria tudo aquilo – e em algumas horas se sentia tão mais bonita, tão pronta para ela mesma.

Estava com uma saia preta rodada e um cachecol que naquele dia lhe servia como xale. Cerca de cinco centímetros mais alta do que era, por conta do salto. Seu rosto estava magnífico, resplandecente, e seus olhos brilhavam com um toque suave da água salgada que lhe borrava o lápis. Estava linda, como poucas vezes em toda a sua vida. E sabia que agora tinha para quem mostrar toda a sua beleza.

Pensou mais uma vez no que ia dizer, para não faltar nenhum detalhe na hora em que decidisse revelar tudo. Retocou a maquiagem e percebeu que chegara a hora. Colocou o espelho um pouco curvado no chão, frio, como estava frio. Sentou-se e reclinou um pouco a cabeça, porque assim ficava mais bonita. Sentiu uma gota vinda de seus olhos e que caíra sobre a saia. Chorou. Era a primeira vez que conseguia revelar a si mesma o que teimava tanto em não acreditar. Não podia mais... Chega! É segredo!

terça-feira, junho 07, 2005

Na hora de tirar a maquiagem

Guardou com cuidado as roupas no armário já roto, remoído por cupins e pintado com ar de luxo. Há anos repetia a ação, mas com a mesma obstinação com que cuidara dos trajes pela primeira vez. Sacudia-os e tinha atenção para que nenhuma parte ficasse amassada. Um cheiro bom de passado invadia o cômodo cada vez que abria o armário. Daqueles cheiros de madeira antiga, que parecem guardar parte da vida.

Sentou-se na poltrona, que nunca antes tinha sentido sua presença. Era só para os outros... Mas precisava se dar esse luxo uma única vez e esse era o dia. Sentiu o cheiro da fumaça dos cigarros e o barulho dos últimos clientes que pagavam suas contas. Colocou na boca um final de cigarro esquecido em cima da penteadeira, para passar o tempo. Deliciou-se com as formas que podia produzir no ar. Ele podia!

Os músicos já tinham se despedido. Guardava agora o traje do saxofonista, seu preferido. A serenidade da roupa contrastava com o cômodo repleto de luzes coloridas, de cartazes de apresentações antigas, dos sapatos reluzentes usados pelas dançarinas que também se utilizavam daquele camarim. O carpete era o mesmo de quando começara a trabalhar lá e as marcas de bebida estampadas na lã mostravam um pouco da sua história. O espelho gasto refletia sua cara também marcada pela idade, a mesma que consumia o ambiente.

Não podia guardar o traje outra vez. Não era isso que queria. Faltava-lhe coragem; por que nunca faria o que sempre sonhou? Deu mais uma tragada e percebeu que os clientes já haviam saído. Ouvia o ruído dos carros e das conversas do lado de fora. Sentou-se mais uma vez na poltrona. Colocara o traje na cadeira à sua frente, ao lado da penteadeira. Sentiu aquele instante como único.

Ouviu passos, que não distinguia de onde partiam. Pulou de repente ao sentir que batiam à porta e jogou o traje para dentro do armário.

- Ei, João, você ainda está aí?

Não esquecera de apagar as luzes. Orgulhava-se disso. Trancara a porta e sabia que não perceberiam sua presença se esperasse em silêncio por mais alguns instantes. Paulo gostava de ir cedo para casa e não voltaria para bater à porta outra vez.

Recompôs sua expressão fatigada e sabia que agora era a hora. Os trajes eram seus, o camarim era seu, o espelho, os sapatos, a poltrona... ah, a poltrona; tudo era só seu. Jogou a bituca de cigarro no chão. Seria mais uma marca na lã já corroída do carpete. Mas essa ninguém veria. Tinha certeza disso.

Pegou o isqueiro. Não encontrou outro cigarro. Queria mais um trago pra lhe dar coragem. Pegou cuidadosamente o traje do saxofonista. Era seu número, sempre soube disso. Ficaria perfeito. Acendeu o isqueiro e cuidadosamente, como sempre cuidara de tudo aquilo que nunca fora seu, aproximou a chama do traje. O colorido do camarim ficou superficial com as chamas, que consumiam uma vida inteira. Ainda com cuidado colocou o traje na poltrona, os dois agora de um vermelho intenso. Sentou-se na cadeira em frente à penteadeira. E começou a tirar a maquiagem.