quinta-feira, setembro 13, 2007

O Brasil passou do ponto

Está no Código de Defesa do Consumidor: “os órgãos públicos, por si ou suas empresas concessionárias (...) são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes e seguros”. Na prática, isso não é assegurado ao usuário do transporte coletivo, principalmente de ônibus.

Pense no caminho entre sua casa e o ponto de parada de ônibus mais próximo. Quanto tempo você gasta e como são as calçadas no percurso? O ponto de parada possui iluminação, bancos para se sentar, informações sobre veículos e horário em que passam? Os ônibus circulam em intervalos regulares? Geralmente há lugar para se sentar e é possível chegar no horário a compromissos? Provavelmente, as respostas não são animadoras para os mais de 55 milhões de brasileiros que usam diariamente o transporte coletivo.

Os municípios devem regulamentar e fiscalizar os serviços públicos de transporte, delegados a empresas que os prestam por concessão. Também cabe aos governos melhorar condições de vias públicas e de pontos de parada, o que aumentaria a qualidade do transporte, mas pouco é feito. Caminhamos na contramão: a demanda pelo transporte coletivo urbano diminuiu nos últimos anos, principalmente pela ineficiência do sistema e pelas altas tarifas cobradas, gerando círculos viciosos que só pioram a situação dos usuários desse tipo de transporte. “As tarifas são calculadas dividindo o orçamento do serviço pelo número de passageiros pagantes. A elevação de preço reduz o número de pagantes. No reajuste, a ‘conta’ é dividida por um número menor de usuários, pressionando os valores para cima mais uma vez”, esclarece Marcos Bicalho, superintendente da Associação Nacional de Transportes Urbanos (ANTP).

Essa situação seria amenizada com políticas públicas de incentivo ao uso do transporte coletivo. Um bom exemplo, pouco seguido, é o de Curitiba, onde há planejamento integrado de transporte e uso do solo, além de continuidade política das ações de governo, ou seja, uma boa iniciativa não é destruída com a mudança de prefeitos. Já em São Paulo, uma das cidades mais congestionadas e poluídas do país, cinco novos corredores de ônibus (com mais de 50 quilômetros de extensão) serão construídos até 2008. Infelizmente, isoladamente, essa medida tende a não trazer resultados efetivamente benéficos. Políticas que poderiam ser tomadas em conjunto para ter melhores resultados são: a redução do preço do óleo diesel, o subsídio ao transporte de idosos e o planejamento da rede de linhas.

É claro que os governos não têm recursos disponíveis para investir o necessário, mas o que possuem é usado de formas questionáveis. “Salvo raras exceções, as políticas públicas continuam a estimular o crescimento do transporte individual e a penalizar o coletivo, sem contar com a carência de investimentos em infra-estrutura urbana para o transporte coletivo”, critica Bicalho. Além disso, o governo pouco fiscaliza o trabalho das empresas concessionárias, que como grupos privados, se preocupam essencialmente com o lucro. Os direitos do consumidor – como acessibilidade, freqüência de atendimento, tempo de viagem, lotação, segurança, sistemas de informação, estado das vias e comportamento dos operadores – são relegados ao esquecimento.

O que pode ser feito?

Os interesses em jogo são poderosos e a população é o elo mais frágil. Restringir ou encarecer o uso do automóvel, por exemplo, coloca o governo em colisão com a indústria automobilística. Combater o transporte clandestino pode causar choque com setores do Legislativo que assumem práticas clientelistas. Exigir melhores serviços das concessionárias, apesar de ser função dos governos, também causa atritos difíceis de contornar.

Como os problemas são muitos, somente em longo prazo algo vai mudar. No entanto, é direito do consumidor receber um serviço adequado e dever das empresas prestá-lo da melhor forma, com fiscalização dos governos. Entre as muitas políticas que podem amenizar a situação, Érika Kneib, arquiteta urbanista especializada em transportes coletivos urbanos, cita uma em especial: “o processo licitatório do sistema é fundamental para que os direitos dos usuários sejam garantidos. Quando o processo é adequado, o poder público exerce seu papel de gestor e fiscalizador”.

Já para Paulo César Marques da Silva, professor do Programa de Pós-Graduação em Transportes da Universidade de Brasília (UnB), a solução seria inverter as prioridades entre automóvel e transporte coletivo. “Se entendermos o consumidor de transporte como todo cidadão, então seus direitos são os constitucionais de ir e vir. E estão acima do direito individual de usar espaços públicos para fins privados”.

O lucro das empresas também costuma ficar acima dos direitos dos usuários. Elas não fazem política social e só existem se tiverem resultados financeiros positivos. Nesse ponto, é fundamental o subsídio de governos, para que o acesso não fique limitado ao poder econômico de cada cidadão. As soluções do transporte passam, necessariamente, por políticas públicas, e não por questionamentos nas relações de mercado. “Cabe aos usuários fazer reclamações e exigências ao poder público e não às empresas, que são apenas prestadoras do serviço”, esclarece Érika.

Infelizmente, a população nem sempre é ouvida. A aposentada Alice Victor de Oliveira, hoje com 70 anos e associada do Idec desde 1994, já reclamou muito do transporte coletivo de seu bairro, na zona sul de São Paulo. A partir de mudanças feitas na região, muitos ônibus não conseguiam mais passar por uma das ruas do itinerário, estreita e não adaptada para o novo volume de veículos. Com isso, o trânsito parou e os usuários chegaram a esperar mais de uma hora por um ônibus. “Mas eles resolveram a situação. Mudaram o ponto de lugar: agora fica em cima de um bueiro. É um absurdo, as pessoas podem até quebrar o pé na correria. Vamos reclamar de novo”, avisa Alice. E essa nem foi a pior situação que a aposentada viveu como usuária de coletivos. “No ano passado, entrei em um microônibus e me sentei no banco ao lado do motorista. Pouco depois, entrou uma jovem que carregava uma pequena sacola e me obrigaram a descer do ônibus (porque o bilhete não estava habilitado para passar na catraca) e me sentar após a catraca, para dar lugar à jovem. É uma falta de respeito, principalmente pela minha idade. Reclamei, mas esqueci de anotar o número do veículo e a reclamação não valeu de nada”, lamenta.

Apesar das dificuldades, o poder para exigir dos governos as mudanças necessárias está nas mãos dos consumidores. “A primeira exigência é receber informação sobre o sistema e sobre os horários, para ajudar na fiscalização. Também deve-se pedir informação de como é calculada a tarifa. Além disso, pode-se avaliar a capacitação de técnicos e gestores do órgão de transporte da cidade”, orienta Érika. E quando as reclamações não dão resultado, o usuário pode questionar na Justiça. Dessa forma, os órgãos podem ser condenados a cumprir suas obrigações e ainda pagar indenização, conforme o prejuízo apurado em cada caso.

Serviço adequado a todos

Se você é usuário freqüente de ônibus, responda a mais esta questão: quantas vezes entrou em um coletivo que possuía acessibilidade para pessoas com deficiência? Esperar qualquer ônibus é demorado. Esperar um com acesso especial, então, é um teste de paciência. Atualmente, apenas 5% dos ônibus possuem plataforma elevatória (para acesso de cadeirantes), 2% têm piso rebaixado e menos de 2% operam em corredores com plataforma elevatória.

“Não há planejamento do espaço público. As calçadas, por exemplo, funcionam como extensão do espaço privado e não respeitam necessidades especiais das pessoas”, afirma Ana Maria Barbosa, coordenadora da Rede Saci, que discute direitos de pessoas com deficiência. A pesquisadora enfatiza que há muito o que fazer para garantir acessibilidade no transporte coletivo, mas não despreza a evolução no setor nos últimos anos. Para ela, toda adaptação é bem vinda, desde que cumpra as recomendações para acessibilidade e não prejudique nenhum usuário. “Não adianta facilitar a vida de um cadeirante e dificultar a de um idoso”, comenta sobre os ônibus com piso rebaixado e escadas antes e logo após a catraca.

Em julho, o Inmetro divulgou a Portaria 260/2007, que regulamenta as adaptações que devem ser feitas na frota nos próximos anos, garantindo acesso maior. Alguns dos itens contemplados são: características da plataforma elevatória, reposicionamento de bancos preferenciais e adoção de iluminação nos degraus. Boa parte da frota, ao ser renovada, vai contemplar essas modificações. Em São Paulo, por exemplo, ônibus de piso rebaixado e até os que têm escadas antes e após a catraca (que podem ser perigosos para a mobilidade dos idosos) já estão em circulação.

Curiosidades do transporte por ônibus

» A tarifa de ônibus mais barata é a de Belém do Pará, que custa R$ 1,35. A mais cara é a de São Paulo, que sai por R$ 2,30. Mas em termos relativos ao valor da cesta básica, a tarifa de Salvador é uma das que mais compromete o bolso
» Cerca de 37 milhões de brasileiros são excluídos do transporte coletivo por falta de dinheiro para pagar tarifa, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)
» A velocidade média dos ônibus nas grandes cidades brasileiras não chega a 15 quilômetros por hora, quando não há corredores preferenciais
» A frota de ônibus no país atende mais de 55 milhões de pessoas, com menos de 100 mil veículos

* Texto também publicado na Revista do Idec 114, de setembro de 2007

domingo, setembro 09, 2007

Morte do pai de Eva

Ah, vocês, gente do sul – aponta a Lu numa voz acusatória. – Sou sena. Entre nós, os senas, a morte é íntima. Tão íntima como o beijo, como o amor, como o nascimento. A morte diz respeito a um núcleo apenas. Os parentes e amigos apresentam pêsames, mas não se detêm para não serem conspurcados pelo espectro da morte. Aqui no sul, a morte é celebração, é festa. Uma oportunidade boa para comer sem pagar. Com a elevada mortalidade que há, conheço gente que anda de funeral em funeral, a cantar, a chorar, comer e engordar sem a menor despesa. Digam-me vocês todas. Quem vai encher as panças de toda essa gentalha?

Espanta-me a rapidez com que chegaram à conclusão da morte e à urgência de me chamarem de viúva. (...) Entram no meu quarto e desmontam os móveis para abrir espaço e cobrem toda a mobília com lençóis brancos. Arrastaram-me para um canto, raparam-me o cabelo à navalha e vestiram-me de preto. Acabava de perder poderes sobre o meu corpo e sobre a minha própria casa. (...) Chega gente de várias direções numa procissão de formigas. Em poucos instantes enchem-me a casa. Nos dias que correm, dá-se mais valor à morte que à vida e a morte é mais importante que o nascimento. As mulheres gostam de velórios. Nos velórios podem uivar todas as suas dores como lobos na noite, purificam os seus corpos de ácidos, na torrente de lágrimas. Quando a garganta seca e a força se esgota, recarregam a energia com chá e açúcar, pão e manteiga, paga pela família do morto. Os homens gostam de velórios para descansar, jogar ntchuva, damas, cartas, cavaquear sobre política, futebol e mulheres. O velório é um momento bom para vomitar infâmias, exorcizar fantasmas, apunhalar inimigos, rever parentes e velhos amigos e receber algum espólio. Na morte todos se reúnem e choram, mas em vida o homem combate só.
(Niketche: uma história de poligamia, de Paulina Chiziane - Cia. das Letras)

Os soldados e comandantes estão enfileirados. À frente, os músicos tocam uma marcha fúnebre. Uma imensidão de pessoas se aglomera. Os militares apontam suas armas para cima, batem os pés no chão e se voltam para a frente. O movimento se repete duas vezes. Voltam à cena os músicos, que encerram a marcha. Em um comando, a tropa se alinha, dá meia volta e se retira da frente da entrada do local em que acontece o velório do pai de Eva. A multidão se aperta para entrar no recinto e não há ordem por idade, gênero ou raça. Todos querem ir à frente.

Hoje é sexta-feira e a morte dele ocorreu na segunda, um dia após eu me mudar para a casa de Eva. Sou a única branca no velório e me aglomero para participar da cerimônia.

O local em que está o corpo é uma sala de uns 30 metros quadrados. No centro, acima dos quatro degraus de cimento, está o caixão. As paredes são claras e as únicas cores pertencem às flores depositadas: brancas, amarelas e vermelhas. Nas escadas, há uma foto emoldurada, em preto e branco, do coronel falecido. Do lado esquerdo, os militares que trabalharam com ele. À direita, os familiares, vestidos de preto. As mais velhas, com capulanas pretas amarradas na cabeça. No alto das escadas, bem no fundo, há velhos que entoam canções no dialeto local. Músicas tristes, ritmadas, envolventes.

Entro, espremida , e vejo uma tia de Eva apoiando nos braços uma senhora bem velha. Ela tem lágrimas nos olhos e apenas pisca quando me vê. À frente estão Eva e seus irmãos, de braços dados ou se apoiando mutuamente. Subo as escadas. Do alto, vemos o caixão aberto, mas coberto por uma pequena toalha de renda. Descemos em fila indiana, até o lado de fora do velório.

Saio com lágrimas por todo o rosto, tremendo, com a sensação de que a cerimônia é forte demais. Os cantos são profundos, tristes. A multidão chega a centenas de pessoas.

Como manda a tradição

Em África, a tradição tem presença muito forte, embora não faça parte do cotidiano dos jovens. Assim que tiveram a notícia, os mais próximos se juntaram na casa do falecido. E assim devem ficar durante 15 dias. São feitas reuniões de família para estipular quando os parentes mais distantes estarão presentes e só com essa confirmação o enterro é marcado. Até lá, todos permanecem na mesma casa.

Apesar da tristeza, a morte deve significar união entre os familiares. Mas também significa ter muitos gastos. Como o pai de Eva era da banda militar, os custos do funeral serão pagos pelo Estado. As outras despesas, no entanto, ficam com os filhos: todos os que vêm de longe serão alimentados por eles nas duas semanas que se seguem à morte, data em que podem retornar às suas casas.

Durante esse tempo, as reuniões familiares são praticamente diárias. Uma delas foi para decidir onde seria feito o enterro. Os filhos, que vivem em Maputo, queriam o pai enterrado nessa cidade. Os irmãos mais velhos (as titias, como diz Eva), exigiam que o corpo fosse levado a Manjacaze, na província de Gaza, onde ele nasceu. Diziam que os mais novos não entendem nada e que se o corpo fosse enterrado na capital, os jovens não teriam mais apoio dos velhos. Venceu a tradição.

Também mandam os costumes que, quando um parente morre, não se pode namorar. O sexo fica proibido até o final das cerimônias fúnebres. Eva me pergunta se é assim também no Brasil.

Logo após a notícia da morte, os familiares se reúnem na casa do falecido. Todos os mais velhos ficam na sala. Os homens sentam-se do lado esquerdo, em cadeiras. As mulheres, todas com capulanas amarradas, ficam do lado direito e se aglomeram no chão, deitadas em esteiras de palha. Elas expressam tristeza, pois assim deve ser, me dizem. Os mais jovens ficam no quarto: homens e mulheres no mesmo espaço.

Mesmo com tanta tradição presente, há situações que poderiam se dar em qualquer parte do mundo, como as brigas por bens. Os irmãos do falecido discutem com os filhos para saber quem ficará com a herança do velho militar. Em cada uma dessas brigas, os parentes votam o que deve ser feito.

Para decidir a roupa do enterro, também foi feita uma reunião. Dessa também participaram os militares. E a família não tinha poder. Ele deve ser enterrado com a roupa de trabalho. O chapéu do exército, entretanto, ficará para o filho mais velho.

Como os familiares devem ficar reunidos desde a morte até que se encerrem as cerimônias, é preciso que tenham folga no trabalho. E têm. Dependendo da empresa, os parentes de primeiro grau recebem até duas semanas. Para os mais distantes, apenas uma semana. Eva, mesmo sendo filha, ganhou uma semana só.

Por feitiço

Quando tinha 12 anos, Eva perdeu a mãe. Após a morte dela, seu pai teve outra mulher, com quem também teve filhos. Eles se separaram, mas essa mulher foi hoje ao velório na casa do falecido. Eva e sua irmã, no entanto, a expulsaram de lá. “É uma feiticeira”, grita.

Pergunto se ela tem algum poder e Eva afirma que sim. Desejava a morte do ex-marido e só foi lá para confirmar. Não sofria de verdade.

Em Moçambique há feiticeiros, que têm poder para o bem e para o mal. “Meu Deus, estou enfeitiçado!”, gritou a personagem de Mia Couto em Terra Sonâmbula. “A cabra me deitou feitiço... a puta estava com os sangues, raios a partam... grande puta: estavas menstruada!”. O escritor ainda explica: “vinha à mente a voz da crença, condenando aquele que ama uma mulher em estado de impureza. Também o português punha crédito em tais africanas maldições: nele os sangues haveriam de escorrer, transbordantes.” Em casos como esse, os enfeitiçados têm uma única forma de se livrarem da maldição, que é fazer um corte no pescoço. O problema surge quando pensamos em uma sociedade onde mais de 1,5 milhão de pessoas estão infectadas pelo HIV. As facas estarão desinfetadas?

A crença em feitiços está enraizada na cultura e tenta explicar a sociedade. Tuberculose e hérnia, por exemplo, são doenças de quem dormiu com viúva que ainda está no período de luto. E nenhum marido desconfiaria de traição se a mulher ostentar um osso de cabrito dentro de casa, mesmo que ela tenha engravidado no ano em que ele se encontrava fora da cidade. Esse osso permite que uma pessoa esteja em dois lugares ao mesmo tempo. Atualmente, muitos acreditam que esses feitiços ocorrem e são totalmente verdadeiros. Muitos outros acreditam que são apenas mitos, lendas que enriquecem a cultura moçambicana.