segunda-feira, agosto 22, 2005

Em outros tempos

http://noticias.terra.com.br/popular/interna/0,,OI638068-EI1140,00.html

Sentou-se com a neta para almoçar. Olharam o cardápio.

– Eu quero de camarão, disse a menininha ao garçom.

– E eu quero duas bolas de bacalhau, por favor – pediu a velha.

O restaurante estava lotado. Com o calor, mais pessoas passavam a apreciar aquele tipo de culinária já consolidado em praticamente todo o mundo.

– Sabe, querida, quando a vovó tinha a sua idade, ninguém comia sorvete no almoço. A bisa não deixava não. Eu lembro até hoje como mentia pra bisa dizendo que tinha almoçado arroz e feijão quando tinha, na verdade, tomado sorvete de chocolate. Ai, outras épocas. No tempo da vovó sorvete só era doce, sabia? Não dá nem pra imaginar, né?

A novidade já era antiga demais para que a menininha se surpreendesse com o que a avó acabara de contar. E Lúcia sabia disso. Não podia, no entanto, esquecer do dia em que viu a placa na sorveteria ao lado de sua casa anunciando que agora também podiam comer sorvetes salgados. Fora no ano de 2005. No verão. E naquela época a consistência ainda era bem diferente, mais cremoso, mais macio. E o preço também mudara bastante: só para os ricos, dizia sua mãe.

Não se cansava de lembrar todas as vezes em que amigos lhe perguntavam como conseguia comer sorvete de chocolate no lugar do almoço. Por que nunca pensara em responder “porque ainda não inventaram sorvete salgado, com gosto de almoço”?

Sorriu discretamente, com a idéia tão tardia. Será que seus antigos amigos agora também comiam sorvete de almoço?

– O de bacalhau – disse o garçom.

– Para mim, por favor – olhou Lúcia.

Almoçaram sem pressa e o tempo passou em silêncio. Pediram arroz doce de sobremesa.

quinta-feira, agosto 04, 2005

Aniversário

Hoje eu sinto que cresci bastante
hoje eu sinto que estou muito grande
sinto mesmo que sou um gigante
do tamanho de um elefante
é que hoje é meu aniversário
e quando chega o meu aniversário
eu me sinto bem maior, bem maior
bem maior, bem maior do que eu era antes.

(Aniversário, Paulo Tatit e Luiz Tatit)

quarta-feira, agosto 03, 2005

A vaca

http://diversao.terra.com.br/interna/0,,OI614813-EI3615,00.html

Chegou em casa eufórico. Todos estavam almoçando e adorariam a surpresa. Pediu que o carregador entrasse com cuidado, pois a vaca era feita de fibra de vidro, e ele não queria ver nenhuma lasquinha.

A casa era ampla e antiga, com uma porta de madeira de mais de três metros de altura. Logo na entrada havia um velho tapete vermelho e quadros com molduras douradas, colocados cuidadosamente separados por toda a extensão do corredor, o que dava ao ambiente um ar pouco descontraído.

- Coloque a vaca aqui, por favor – apontou para o carregador, indicando o final do corredor, de onde se avistava uma grande sala de estar, com um piano de cauda ao centro.

A esposa e a mãe, que almoçavam, saíram depressa do cômodo e correram para a sala, tentando descobrir o porquê da agitação que se instaurara na casa sempre tranqüila e silenciosa. Arrumando os cabelos presos em um coque e a longa saia azul que levantara um pouco com a corrida, Helena não entendeu o que acontecia quando viu o carregador se afastando da sala e avistou aquele bicho colorido. Um pouco atrás, apreciando o objeto com cautela que só quem já ensinou muitas gerações pode ter, a mãe de Bento estava admirada, e cansada pela corrida que ensaiara ao sair da cozinha.

- E então, o que acharam desta maravilha? – perguntou Bento sem se virar para as mulheres, acariciando sua aquisição.

A vaca era branca, do tamanho de um animal natural, com desenhos feitos à mão, por artistas russos. E Bento a adquirira em um leilão, uma perfeita obra de caridade, enfatizava. Todo o dinheiro arrecadado pela venda do objeto seria revertido para a instituição de caridade do município.

Helena ficou constrangida. Não deveria contrariar as vontades do marido, mas que excentricidade aquela! Uma vaca? E ao lado de seu lindo piano? Tentou dissuadir Bento da vontade de deixar aquele objeto na sala. Podiam devolver, pois dessa forma a instituição de caridade poderia então vendê-la novamente e mais pessoas seriam beneficiadas pela tamanha bondade do marido.

- De jeito nenhum. Não vou vendê-la por nada. E além do mais, todos em Paris já falam desta maravilha aqui. Você verá como todas as suas amigas comentarão com inveja sobre nossa bela aquisição.

Dona Querela, mãe de Bento, não comentara nada, mas gostara da vaca. Simpatizava com ela. E começou a admirá-la cada vez mais.

Um dia dona Querela avisou, à hora do almoço, que algo muito ruim aconteceria, alguém levaria grande parte da riqueza de toda a família. Helena e Bento se entreolharam e temeram pela saúde mental de Querela. Agora dera para inventar coisas...

À noite, quando se preparavam para o jantar, ouviram um grande alvoroço à porta da casa.

- Ei, ei, abram rápido! Seu Bento! Dona Helena! Corram! – gritava um dos empregados da grande casa.

Uma desgraça tinha acontecido há poucas horas. O caminhão que levava toda a produção de batatas da fazenda nos últimos quatro meses capotara na estrada. Toda a mercadoria fora saqueada pelos homens locais e o motorista se ferira gravemente.

Novamente Bento e Helena se entreolharam. Dona Querela espiava ao longe, melancólica, triste. Afastou-se e foi à sala, sentou-se ao lado da vaca, que agora chamava carinhosamente de Cândida. Ela já sabia disso, a vaca lhe avisara de tudo que ia acontecer. E fez-lhe um pedido, porque também sabia que Cândida poderia realizá-lo. Pagaria o preço exigido, mas queria que Bento e Helena tivessem de volta o sustento para os próximos meses. Não podiam perder tão enorme quantia de dinheiro, não teriam nem como comer até a próxima safra, que deveria demorar ainda muito. Acertou o acordo. Seria na manhã seguinte.

Naquele frio domingo de junho dona Querela acordou mais triste. O filho pouco notou, devido aos problemas do dia anterior e à preocupação para acertar de alguma forma a situação em que se encontravam. Helena ficou na cama até tarde e esqueceu-se de fazer o almoço para a família.

Dona Querela arrastou-se vagarosamente até a sala, apreciando cada retrato pendurado na parede do corredor, lembrando pessoas que já haviam caminhado por ali também lentamente. Aproximou-se de Cândida, confirmou que já estava pronta. Ouviu a campainha. Um banqueiro da cidade se solidarizara e trouxera auxílio para os próximos meses. Levaria a vaca como garantia do pagamento. O pacto estava cumprido. Cândida fizera sua parte e chegara a hora dela. Dona Querela ainda caminhou lentamente até o sofá e acomodou-se ao lado do piano, imaginando seu retrato ao lado direito do corredor.

Nas férias, Bento e Helena foram para Paris.

terça-feira, agosto 02, 2005

De alguma poesia...

Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias, espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas em ênfase.

Vomitar este tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam pra casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens macias avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

(A Flor e a Náusea, Carlos Drummond de Andrade)

segunda-feira, agosto 01, 2005

Guerra

Pessoas correndo
Homens-bomba
caindo

Olhares dispersos
Confusos
tristes

Palavras sinistras
Falsas
palavras?

Barulhos constantes
Intensos
voando

Fogo, fumaça
Destruição
morte

Choro, dor
Desilusão
vida?