terça-feira, julho 26, 2005

Sobre o olhar

Odeio os chats de conversação por computador. É como se me colocassem diante de uma pessoa para que eu conversasse com ela de olhos vendados, sem sequer ouvir sua voz... E me dessem de consolo bilhetinhos com suas frases... Não, ainda não cheguei a esse ponto de estupidificação mental... Não posso imaginar conversar com alguém sem ver seus olhos, que para mim são muito mais do que órgãos de visão. São órgãos de imersão... São como o inverso do periscópio, tal qual os jogos de lentes cruzadas e diagonais de um microscópio, que me permitem entrar na invisibilidade de um tecido, de um plasma, de microfatia dérmica. Pelos olhos eu vejo em você uma tristeza interior, uma melancolia mesclada com uma vontade terna mas impotente de se exprimir; pelos olhos eu vejo nessa outra pessoa uma ternura solitária, um silêncio interior brando, uma resistência às investidas de todos aqueles que querem torná-la igual aos outros... Pelos olhos eu vejo, em mais essa outra pessoa, as transformações de seu ser, os mesmos olhos que tempos atrás passavam um orgulho vaidoso, indiferente, até mesmo arrogante, hoje denunciam uma incerteza, um olhar inseguro de quem sofreu, se dobrou, teve de refazer a vida...

(Odeio a Internet, de Ciro Marcondes Filho - Revista USP)

quarta-feira, julho 20, 2005

De excentricidades...

http://br.news.yahoo.com/050720/5/vux3.html

O bule gigante entrara em ebulição. Nunca pensara que a cena fosse possível, nem que alguém fosse capaz de tamanha covardia e maldade. Pedro se convertera à religião do bule gigante há cinco anos, quando seu melhor amigo foi curado de fortes dores no peito pela ação terapêutica do templo, em forma de bule.

Na Malásia eram conhecidas as formas orientais de tratamento de doenças melhor do que em qualquer lugar. Todos os conhecimentos do mundo oriental na arte de tratar o corpo e a mente de formas naturais haviam se convergido para aquela região do mundo. Isso era o que sempre ouvia dizer, mas o que via na prática eram grandes amigos seus morrendo sem atendimento ou sem um medicamento que fosse capaz de lhes tirar as dores da vida.

A primeira vez que presenciou alguma transformação verdadeira foi quando seu melhor amigo se viu curado, definitivamente curado, daquela dor aguda no peito, crônica pelos anos de existência e de sofrimento proporcionado. E tudo graças à ação benéfica do bule gigante.

A cátedra fora criada alguns anos antes, no centro da Malásia, cerca de sua casa, em meio às frondosas árvores e à vista de altas montanhas que rodeavam o lugar. Pedro sempre achara o local muito diferente, colorido, lhe encantava. O bule era pintado à mão, como um artesanato daqueles usados pelas donas de casa mais tradicionais para preparar o chá da tarde do marido que assiste à televisão no domingo à tarde. Era principalmente de cores quentes, com recortes geométricos em vermelho e amarelo, tendo como coloração principal um marrom bem clarinho.

Apesar da curiosidade, nunca havia entrado na cátedra, nem contara a ninguém sobre sua admiração pelo prédio escultural. Mas seu melhor amigo percebia o que lhe passava na mente. E era o primeiro a desconfiar. Nunca levaria a sério uma religião que tinha como templo e adorava um bule gigante com poderes curadores.

Apostaram. Nada aliviava as dores no peito de Thiago. Se o bule funcionasse, se converteriam àquela doutrina. A aposta iria completar cinco anos.

Os dois estavam juntos apreciando com ardência as chamas que consumiam o bule. As cores quentes e o calor do incêndio lhes enchiam o coração de mágoa, de ódio, de vingança. Ouviam burburinhos e risadas à volta. Poucos se importavam com a destruição de tão importante patrimônio da humanidade. Sim, porque qualquer pessoa, daquelas que riam às gargalhadas poderia se beneficiar dos efeitos curadores do bule. Pobres coitados, pensava Pedro.

Os bombeiros demoraram a chegar. As chamas já consumiam a semi floresta que rodeava a cátedra. Da casa de Pedro se sentia o calor e a fumaça elevada pelos ventos. No ar, só se sentia o cheiro de destruição. Tudo estava preto.

terça-feira, julho 12, 2005

Mare Orientale

O que dizer?

Que teu cheiro continuaria em minhas mãos
Se não houvesse água e necessidade de tomar banho?
Que teu sorriso interminável continua na memória,
Resistindo contra o esquecimento resultante de lugares à meia-luz?
Nem insistirei em bater-me com tal limitação, pois nada
Do que dissesse alçaria vôo a ponto de superar lembranças:
Dias de chuva, seguidos dum domingo luminoso, do cheiro
Da carne, sons sonhados nos ouvidos toda noite.
A sensação de novamente descobrir um continente,
O riso para sempre perdido num canto de lábio.
Penas de pássaro em tua nuca, e pés, e covas.
Covas sobre a anca inesquecível.
Sem que nuncacabe.
Nuncacabe.

O que dizer?

(de Joca Reiners Terron)

sexta-feira, julho 01, 2005

Na escuridão, perguntei se ele sabia o quanto o amava.
(Frase de Bertolucci escrita para Marlon Brando)

A discussão era interminável e recorrente. Sabia que sempre que algo não andava bem ela seria o alvo das brigas e sofreria com os gritos e palavras ofensivas que os dois bradavam dentro de quatro paredes. Chorava compulsivamente, berrava. Colocou-se em frente à porta para que ele não pudesse sair. Todos na casa choravam, ela sabia. Mas não podia conter-se. A situação já era irremediável.

Pensava em se matar, em quebrar todos os vidros da casa, chamar os vizinhos que espiavam pelas frestas de suas janelas para gritar que aquilo não importava a ninguém e que todos fossem à merda. Tinha ódio das pessoas, tinha ódio das relações que conseguia estabelecer com as pessoas. Amava muito, talvez não soubesse expressar que amava, talvez nem amasse de verdade, talvez não amasse nem a si mesma.

Agora estavam deitados e ela pensava em tudo que haviam dito. O quarto era amplo, uma pequena corrente de ar lhe arrepiava em intervalos pequenos, uma luz escassa lhe permitia ver suas sombras na parede também escura. Sentia um aperto no peito, daqueles que lhe angustiavam quando tinha vontade de chorar. Agora não era mais raiva, mas um sentimento de culpa – pelos dois – de não saber parar quando chegara a hora, de dizer tudo que vinha à boca sem antes pensar em não magoar, de esconder o que sentia verdadeiramente.

Ele dormia, ela sentia sua respiração perto ao peito. Queria acordá-lo, mas seu sono parecia perene, tranqüilo, diferente da pessoa com quem acabara de discutir. Lembrou da vez em que ela dormia e ele lhe deu flores; colocou o presente ao seu lado na cama e lhe acordou com um beijo. Ela se assustara, mas não recebia provas de carinho costumeiramente. Amava-o.
Sua respiração a excitava, olhou mais uma vez para ele, tinha certeza de que estava dormindo. Acordou-o. As luzes que lhe permitiam ver suas sombras na parede tinham se enfraquecido. Na escuridão, perguntou se ele sabia o quanto o amava.