quinta-feira, novembro 29, 2007

Uma mulher moçambicana

Paulina Chiziane fala baixo, como se ninasse um bebê. É escritora e trabalha em um programa das Nações Unidas para a promoção da mulher na Zambézia, uma das províncias de Moçambique. Hoje está vestida como manda a tradição: uma roupa colorida, feita com panos de capulana.

Conversamos em uma tarde de sol, na pensão em que me hospedei em Quelimane, capital da província. Ela fala da condição da mulher, das diferenças que existem entre as regiões do país, das influências que recebeu para se interessar pela luta das mulheres. Seu único livro publicado no Brasil, pela Companhia das Letras, se chama Niketche: uma história de poligamia.

Como começou a sua luta pelos direitos da mulher em Moçambique?

Paulina Chiziane (PC): Nas sociedades como a nossa, onde há guerras, catástrofes, migração assídua, os homens vão embora. As mulheres ficam e são elas que movem a vida. Mas quando chega a hora de retratar a mulher, de lhe dar algo, os homens são ausentes. Constato isso por toda minha vida. Descubro que existe o mundo da mulher que ninguém conhece ou que poucos conhecem; ou que só as próprias mulheres conhecem. Há de ser por isso que entrei nessa luta.

Você costuma dizer que existe uma diferença grande na relação homem-mulher e na maneira como as mulheres se vêem no sul e no norte do país. Como se dá essa diferença? Isso é marcante ainda hoje?

PC: É uma situação absolutamente atual. Aqui na Zambézia (e daqui para o norte do país) temos cidades marcadamente matriarcais. As mulheres têm voz mais ativa, têm um lugar social e têm algum poder. Por exemplo, quando vou às comunidades rurais desta província encontro histórias de mulheres que dizem: “eu não tenho uma relação sexual com meu marido há dois meses e por isso convoquei uma reunião de família”. Eu nunca tinha imaginado que isso acontecesse, mas aqui no norte acontece. O prazer sexual é um direito importante da mulher e as pessoas falam disso abertamente, nos seus grupos. Convocam a família para expor a situação.

Convocam a família dela ou a do marido também?

PC: A família dela primeiro, para discutir a questão. Depois desse passo, os mais velhos se responsabilizam por levar as informações para a família do marido, propondo uma solução. É incrível. Já no sul do país isso acontece pouco. Se o homem é impotente, não tem um desempenho saudável, a mulher tem que suportar, porque ela foi adquirida para isso, para suportar e mais nada. Até na maneira de se vestir as mulheres do norte são diferentes. Elas têm um colorido que alegra.

O vestuário tem a ver com a relação delas com o marido? Com o pai?

PC: Sim, tem a ver com a visão da vida e do mundo. Para elas a mulher tem que ser bela, alegre, agradável, sexualmente satisfeita. Nós não. Eu sou do Sul, e no sul a mulher tem que dizer “sim” a todas as coisas. A mulher é algo que deve ficar guardado em um cofre ou no guarda-roupa.

E você sabe me dizer qual é a origem dessa diferença?

PC: O sistema matriarcal. A partir da Zambézia, caminhando para o Norte, todas as regiões são matriarcais. A linhagem é pela via feminina. Quando há um casamento é o homem que se desloca para a família da mulher e lá fica, constrói a família e a casa. Quando os filhos nascem ganham o sobrenome da mãe e quando o casamento se dissolve é o homem que parte. As decisões desta região matriarcal não pertencem especificamente à mulher, mas ao irmão dela, ao tio dela. Assim, claro, decidem a favor da mulher. É por isso que elas possuem um estatuto que as mulheres do sul não têm. Também é interessante a abordagem das relações amorosas. No sul, a mulher faz de tudo: penteia-se, pinta-se, faz danças na frente do homem para que ele lhe diga algo. No norte não. A mulher diz ao homem: “gostei de ti, quero casar contigo, tranqüilamente”. (risos) De uma forma aberta, clara. Às vezes chega a dizer: “o senhor passou por aqui e não me viu, mas eu vi e gostei. Quer namorar comigo?” Fiquei chocada no princípio, mas me habituei. Se no sul uma mulher faz isso, recebe os apelidos mais horríveis. No dia seguinte todos falarão mal dessa mulher.

Existe um trabalho grande de conscientização com relação ao vírus HIV: cartazes pelas ruas, desenhos nas calçadas, propagandas na televisão... Esse trabalho alcança a população?

PC: Nós tivemos uma guerra terrível. A guerra acabou, mas agora temos a malária. É impressionante o número de pessoas que morrem com a malária, é impressionante o número de pessoas que morrem com cólera. Valerá a pena fazer a prevenção? Essa é a questão que fica na cabeça das pessoas. Infelizmente, mesmo a campanha sendo tão grande, o número de infectados não pára de aumentar. Acredito que seja por causa disso.

Qual a relação das mulheres com a religião, atualmente?

PC: Quando o país ficou independente, o sistema socialista adotado colocou em causa todas as igrejas e religiões: islâmica, tradicional, cristã. À medida que aumentou a guerra civil, o desespero foi grande e muitas pessoas se voltaram novamente para a religião. Hoje, a igreja tem um peso muito forte. É uma das novas formas de identidade.

E no mercado de trabalho, quais as mudanças para as mulheres?

PC: É um processo. Cada vez mais mulheres vão trabalhar e cada vez em melhores posições. Em toda a história de Moçambique, a mulher nunca esteve tão bem como agora. Somos um dos poucos países africanos onde a posição da mulher em termos políticos e em termos sociais é boa. A libertação nacional colocou a mulher em um campo de batalha, ela participou da guerra: foi o primeiro grande passo. Depois, a orientação marxista colocou a comissão da mulher na agenda política e alterou a legislação. Houve campanhas para a educação das raparigas. Hoje as mudanças são visíveis: temos um bom número de mulheres governando. Temos uma primeira ministra, uma das coisas mais extraordinárias que aconteceu no nosso país. Nas empresas privadas a mulher também conquistou postos de poder. Nas zonas rurais, entretanto, a situação ainda é diferente. As mudanças demoram a chegar. Mesmo assim, há um bom número de mulheres que sabem ler e escrever. Nas zonas matriarcais, há ainda as chefes tradicionais, chamadas de rainhas. A liderança da maior parte dos grupos tradicionais se concentra nessas mulheres. Mas o poder delas não significa riqueza. Entre a casa da rainha e a casa vizinha não se notam diferenças.

E como é a vida dessas rainhas? Qual o papel delas na sociedade?

PC: Em abril fui a uma região afetada pelas cheias, e tive que trabalhar com uma rainha. Quando ela chegou, eu pensei: “meu Deus, mas o que ela tem de rainha?”. Tínhamos que fazer palestras sobre a Aids, porque havia uma concentração de pessoas que não se conheciam, que fugiram das cheias e se concentravam ali. Tínhamos que fazer a distribuição de itens básicos de alimentação e higiene, mas estava uma confusão enorme. Todos queriam ser os primeiros. A polícia estava presente, os chefes formais também, mas ninguém conseguiu controlar a situação. Nesse momento a rainha disse: “sentem-se”. Apenas levantou a mão e todos se sentaram. E completou: “a distribuição será feita por famílias. Vou chamar as famílias da zona do Sol Nascente. Levantam-se!” Levantaram-se somente as famílias chamadas e foram buscar a sua comida, o seu sabão, na maior ordem. “Agora levantem-se os do Sol Poente!” Foi impressionante, não houve quem pudesse controlar a população da forma como aquela mulher fez. Nas crenças da população, essa chefe tradicional (escolhida por linhagem) é uma espécie de guardiã, nomeada divinamente. Para a comunidade, ela é a pessoa que estabelece pontes entre os antepassados (mortos) e os vivos. O poder da liderança feminina tradicional existe nessas regiões. E é único. Tudo isso faz parte da profissão da mulher. Há histórias interessantes que envolvem esse poder tradicional. Lembro-me de uma vez em que havia uma reunião local. Estavam presentes uma ministra e as rainhas tradicionais. A ministra, com todo o poder do Estado e das academias européias, apontou para uma das rainhas tradicionais para que ela se pronunciasse. A mulher simplesmente olhou e não abriu a boca. A ministra insistiu: “é consigo que estou a falar”. Nesse momento se levantaram alguns homens e disseram: “na nossa terra, na nossa tradição, ninguém pode apontar o dedo e ordenar qualquer coisa à nossa divina representante. Ela é nossa rainha!” A ministra não pôde dizer mais nada. Para mim, há momentos em que parece haver inveja, conflitos entre o poder formal e o tradicional. O poder tradicional é muito forte em nossa terra.

Existe alguma representação dos poderes tradicionais no estado formal?

PC:
Existe, mas é algo carnavalesco, só para fazer festa.

O principal ponto desse poder é a ponte entre os antepassados e os viventes?

PC: Exato. E é bom ver que as pessoas veneram o seu líder (ou a sua líder), porque é uma pessoa igual a elas, que vive e sofre como elas. Os chefes preferem ficar sem nada para que os outros tenham. Posso me enganar, claro. Os seres humanos são complexos e há pessoas que abusam do poder que têm por causa de suas ambições. Mas, quando comparo os dois poderes...

Sobre o futuro da mulher moçambicana, ainda existem tabus que impedem a igualdade de direitos? Como você vê a sociedade daqui para frente?

PC: Os 30 anos de independência mostraram que a vida da mulher pode mudar para melhor. Ela pode ter um bom emprego, um bom salário etc. Mas também pode piorar, porque a mesma mulher que vai ao parlamento tem de voltar à casa para cozinhar, lavar e cuidar dos filhos. À medida que a mulher tem acesso ao novo mundo e a novos recursos, a sobrecarga na vida dela aumenta. O que está a acontecer com algumas mulheres é que elas lutam, vencem, e o produto do seu trabalho vai para as mãos do homem, que depois diz: “como não tens tempo para estar aqui, fui arranjar a segunda mulher”. Quantos casos de mulheres que eu conheço não são iguais a este? O marido pegou o dinheiro dela para ir casar com uma nova mulher, “porque não tens tempo para lavar, para cuidar de mim... Já que tens muito jeito para trabalhar, vai. Agora arranjei uma para me fazer café, pão”. É a nova escravatura das mulheres. A situação muda na aparência e há sempre outras formas de dominação. As mulheres modernas são máquinas de trabalho, não têm tempo para cuidar da casa. Trazem mais pão, que depois vai para as mãos de uma outra mulher que não trabalha. É um horror! Mas a situação vai melhorar. Temos um governo que defende a posição da mulher, a legislação tende a mudar cada dia para melhor. Ainda ontem assisti à graduação em um curso de formação de médicos, onde 46 pessoas eram mulheres. Isso era impensável há seis anos. Primeiro o diploma, depois o emprego e, por fim, a libertação da escravatura. Já os hábitos tradicionais são muito mais difíceis de mudar, mas a legislação está caminhando e a mudança virá. Estou com otimismo.

*entrevista concedida por Paulina Chiziane em maio de 2007

segunda-feira, novembro 12, 2007

Crédito para dar, vender e endividar

Cartões de loja incentivam o consumo exagerado, aumentando os lucros do comércio e o endividamento da população. Principal usuário desse tipo de crédito é o trabalhador que recebe até três salários mínimos mensais

"Boa tarde. A senhora possui o Cartão Sonda? Se quiser, pode fazer agora mesmo, sem cobrança de anuidade”. Quem nunca foi parado em um supermercado ou em um grande magazine e recebeu insistentes propostas para fazer um cartão da loja que levante a mão. A última moda é oferecer anuidade grátis, o que pode ser bastante tentador à primeira vista. No entanto, não há cartões em que o consumidor de fato não arca com custos. Sai a anuidade, entram taxas de manutenção, de utilização e tantas outras.


No caso do supermercado Sonda, rede de 12 lojas na Grande São Paulo, a oferta é por um cartão sem anuidade. A atendente não dá mais informações, que só podem ser conseguidas no balcão de informações ou lendo o folheto publicitário. A aquisição do crédito implica em um custo de manutenção de R$ 3,90 toda vez que houver emissão de extrato, ou seja, sempre que for feita alguma compra com o cartão, que também pode ser utilizado fora dos estabelecimentos Sonda. Se utilizado todo mês, o desembolso será de R$ 46,80 no ano – valor que não fica para trás das taxas de anuidade cobradas no mercado.


Mas como cada rede de lojas adota uma política diferente, o importante é ficar atento, perguntar sobre custos e questionar a cobrança de qualquer tipo de taxa não especificada na hora da contratação. No geral, é possível encontrar o valor das cobranças em letras minúsculas no contrato ou nos folhetos publicitários. Poucos dos responsáveis por vender o serviço, no entanto, alertam sobre tarifas, apesar de o Código de Defesa do Consumidor (CDC), em seu artigo 6º, assegurar o direito de receber informações adequadas e claras sobre os serviços ofertados.


No Carrefour, por exemplo, a anuidade é grátis, mas é cobrada uma taxa de R$ 1,99 toda vez que houver movimentação com o cartão – que pode ser usado na rede de supermercados, nos postos de abastecimento Carrefour e em lojas credenciadas. O problema, em casos como esse, é o consumidor só descobrir a existência da taxa quando chegar a primeira fatura.


Os estabelecimentos, ainda, oferecem cartões diferentes aos clientes: alguns podem ser usados apenas na própria rede, como é o caso dos cartões das Lojas Marisa; e outros podem ser usados na rede e em estabelecimentos credenciados, como o do Carrefour e o do Sonda. Para o consumidor, praticamente não há diferenças entre os modelos.

“Fazer com que o private label (como é chamado o cartão que só pode ser usado em determinada loja) seja aceito em outros estabelecimentos é uma questão estratégica e envolve custos. Ampliar a utilização traz benefícios aos clientes, por não precisarem carregar outros cartões, mas também traz receitas ao varejista, que recebe porcentagem de vendas”, afirma André Alexandre Alves, especialista em marketing de varejo pela USP (Universidade de São Paulo).


A utilização do crédito em outro varejista, entretanto, faz com que o limite para ser usado na própria rede fique menor. Por isso, muitos preferem que o cartão seja válido exclusivamente em suas lojas. Outros, resolveram a questão estabelecendo limite para uso fora da rede. O consumidor, no meio de tudo, precisa tomar cuidado para não ver nos cartões de loja seus grandes aliados e acabar endividado.

Pontos de relacionamento

Com a explosão do crédito pessoal no início dos anos 2000, as maneiras de agarrar o consumidor se tornaram mais eficazes. Tanto que hoje mais de 128 milhões de cartões private label estão em circulação no país. Em junho do ano passado, eram 107 milhões, ou seja, o crescimento foi de 19% em apenas um ano. O número de transações e o valor das compras com a modalidade cresceram na mesma proporção, com aumento de 17%. O volume de operações passou de 308 milhões para 360 milhões, enquanto o valor das compras subiu de R$ 15,2 bilhões para R$ 17,8 bilhões na comparação entre o primeiro semestre de 2006 e o de 2007. Os dados são da Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Crédito e Serviços (Abecs).


Se considerarmos que a população economicamente ativa não chega a 98 milhões de pessoas, é fácil imaginar o quanto esses cartões contribuem para o endividamento de milhões de brasileiros. “Existem varejistas onde o private label representa mais de 70% das vendas. Por outro lado, é também uma ótima oportunidade de relacionamento com os clientes”, afirma Alves.


Para aumentar as vendas, no geral, oferecem parcelamento de compras sem juros em mais vezes do que é oferecido nos cartões de crédito comuns. A rede de supermercados Bistek, de Santa Catarina, chega a oferecer 70 dias para pagar a compra à vista e financiamento de até 90% do saldo devedor da fatura. Assim, o cliente acaba comprando mais, pois os longos prazos permitem parcelas mensais que cabem no orçamento.


Já para fidelizar clientes, as redes acabam condicionando o pagamento da fatura à ida de uma das lojas, além de armazenar todos os dados das últimas compras realizadas e de oferecer pontos de relacionamento que podem ser trocados por prêmios. Nas Lojas Marisa, magazine de roupas femininas presente em todo o país, por exemplo, os cartões só podem ser usados no site da empresa ou na própria rede e, para quitar o boleto, é necessário ir até uma das lojas. O cartão também oferece anuidade grátis e cobra uma taxa de processamento de fatura (a mesma coisa que taxa de manutenção ou de extrato) no valor de R$ 1,95, toda vez que houver débito no cartão.


Mas o que dá lucro mesmo para as empresas nesse tipo de cartão são as taxas de refinanciamento – responsáveis, portanto, pelo endividamento e parte dos consumidores. Uma conta que deveria ser paga em outubro, por exemplo, fica só para novembro ou dezembro e, para refinanciar o débito do cliente, a loja cobra juros bem altos. No caso das Lojas Marisa, cobra-se taxa de refinanciamento de 9,98% ao mês, mais multa de 2% e mora de 1% ao mês. São ainda cobradas tarifas “de entrada em cobrança com 10 dias em atraso” (R$ 3,05) e “de manutenção em cobrança com 30 dias de atraso” (R$ 2,75).


Endividamento

Para muitos, os cartões de loja acabam sendo a única forma de comprar. Cerca de 40 milhões de brasileiros não possuem conta bancária e precisam trabalhr apenas com dinheiro – ou aderir aos private label.


Lurdes (nome fictício) é aposentada e vive no bairro do Campo Limpo com seus três netos. Recebe aposentadoria, que mal dá para cobrir as despesas. Para comprar roupas e eletrodomésticos, fez cartões das Lojas Pernambucanas e das Casas Bahia. Para a comida, fez também outros dois: do Extra e do Carrefour. Questiono se ela consegue administrar os cartões, para não acumular dívidas e a resposta pode desanimar quem acredita que pode conciliar muitos cartões de loja: “não tenho muito o que fazer, sem os cartões não consigo comprar, mas com eles, também não consigo ficar sem dívidas. Tento apenas dividir os pagamentos, para ter algum cartão disponível”.


Para Alvez, “a educação financeira é incipiente no Brasil e o consumismo é amplamente divulgado. É possível ter vários cartões de loja na carteira, desde que a somatória de gastos caiba no orçamento”. Mas essa é uma tarefa difícil. A responsabilidade, no fim, é exclusiva do consumidor, que precisa administrar suas contas e resistir aos apelos consumistas.