sexta-feira, julho 27, 2007

Eva

A porta do banheiro fica ao lado da porta de ferro preta do apartamento. É de madeira envelhecida, pintada de branco, mas com camadas descoloridas. Não possui chave nem trinco. Entro e a lâmpada está queimada. No fundo, um degrau de cimento foi construído com um buraco no meio, onde devemos fazer todas as necessidades e também tomar banho. A água usada deve cair no buraco e, provavelmente, poderá ser vista na calçada depois. Eva me mostra como devo fazer para me banhar “de canequinha”. Coloco a água que ela esquentou por cerca de 30 minutos em um pote pequeno, de plástico. Molho meu corpo e me ensabôo. Ao sair da casa de banho, enrolada em uma toalha, há pessoas no corredor que desviam seus olhares para mim. Passo rápido e entro no dormitório.

Hoje me mudei para a casa de Eva, uma jovem moçambicana da capital. Ficarei na casa dela durante minha estadia em Maputo. À entrada do prédio não há porteiro, nem grades, nem portas. É apenas uma escada, que surge ao final de um corredor. O dormitório fica no terraço, e a impressão é de que subimos quatro andares. Além da falta de limpeza, não há luz nas escadas.

Entro no dormitório. O primeiro cômodo é a sala, onde há um sofá confortável de cinco lugares, que tem uma cor entre o vinho e o marrom. No canto esquerdo, ficam a televisão, um aparelho de som e o ventilador. As paredes são azuis, com remendos na textura, e a única janela é um pedaço da parede sem cimento, com grades e uma tela. O teto é de telhas de zinco.

Atrás dos sofás, de frente para a TV, estão a geladeira, o fogão elétrico e um grande barril azul – onde é depositada a água que servirá para nossos banhos, para lavar a louça e para fazer comida. A porta entre os sofás e a geladeira é a entrada do quarto, onde há duas camas grandes, muitos sapatos enfileirados, cremes e bijuterias.

A receptividade de Eva é algo incomum. Mas não para Moçambique, onde todos procuram me agradar. Timidamente, se desculpando, ela me conta do problema de seu apartamento: o banheiro fica do lado de fora e é comunitário. E, na verdade, não é um banheiro. “É assim”, sussurra, abrindo a porta.

Promessa para cinco anos

Assim como Eva, que não tem banheiro nem torneiras em sua casa, sobrevive metade da população. Pouco mais de 40% dos moçambicanos têm água em sua residência e, no campo, os índices chegam a ser nulos. Quando se trata de saneamento, o acesso também é precário: passou de 6% em 1980 para 30% em 1993 e 40% na última década.

O governo prometeu melhorar a situação nos próximos cinco anos, mas as mudanças são lentas. Teve início em abril deste ano um projeto de ampliação da rede de abastecimento nas cidades de Maputo, Matola e vila de Boane – no sul do país. Os gastos serão da ordem de 95 milhões de euros, vindos do Banco Europeu de Investimentos, da União Européia, do Governo da Holanda e da Agência Francesa de Desenvolvimento, com colaboração do próprio governo de Moçambique.

Embora saiba como amarrar o lenço na cabeça, Eva não segue a tradição nas roupas. Tem capulanas, mas elas só saem do armário em situações especiais. Quando fala de sua casa diz que pretende, em breve, procurar outra com melhores condições sanitárias.

A capacidade de produção e de transporte deve ser ampliada para o dobro do que existe hoje. Prevê-se que a disponibilidade de água seja de 24 horas por dia, chegando a um milhão e meio de pessoas nessa região. Embora as perspectivas sejam animadoras, ampliando o acesso, boa parte da população ficará de fora da modernização, que chegará a apenas 73% das pessoas.

Isso se falarmos da capital. Em outras províncias e mesmo no interior de Maputo, não há projetos como esse em andamento. Enquanto isso, a inadequada gestão e utilização de água pela população, o modo como se lida com os resíduos e os hábitos de higiene pessoal contribuem para a proliferação de focos de desenvolvimento de doenças como diarréias, disenteria e cólera. Atualmente, a diarréia é responsável por 13% das mortes de crianças com menos de cinco anos no país.

As cheias freqüentes também contribuem para essa situação caótica. Destruíram ou fizeram com que os sistemas de esgoto e de água deixassem de funcionar. Isso leva, periodicamente, a uma cobertura mínima de água tratada nas áreas afetadas e à poluição das fontes de água expostas. Quem sofre são sempre os mais pobres.

quarta-feira, julho 25, 2007

Cheiros mais fortes


* este foi um dos textos que mais gostei de escrever. Ele é extremamente sensorial e por isso acho que é uma das cenas que melhor consegui descrever e que melhor descrevem o que vivi em Moçambique. A foto é a capa do meu trabalho.


São quatro horas da manhã e o despertador acaba de tocar. O chapa (uma pequena lotação bastante destruída) é pontual e está passando na porta da pensão. Entro rápido e vou para o fundo. Os assentos são desconfortáveis, feitos de pequenos filetes de madeira cobertos por plásticos sujos e grossos, na cor vermelha.

Esse chapa nos levará ao ponto terminal do lado continental da Ilha de Moçambique, onde pegarei outro veículo para Nampula. O motorista dá voltas pela Ilha para pegar passageiros e passa mais uma vez em frente à pensão onde me hospedei. Chega à ponte para ir ao continente, mas pára alguns instantes, dá meia volta e começa a circular novamente pela ilha. Olho para as pessoas e sorrio; não há o que fazer.

Ao meu lado sentou-se uma senhora gorda com roupas sujas. A impressão é de são as mesmas roupas utilizadas durante toda a semana. Seu cheiro é azedo, como o dos ônibus de São Paulo em dias chuvosos de verão. Os passageiros mantêm os vidros fechados e, aos poucos, o chapa começa a ganhar um aroma mais forte: como uma mistura de peixe com um tempero agridoce. Meu estômago está se revirando e nenhuma tentativa de escapar desse cheiro é suficiente. Olho para cima, para ver se acima de nossas cabeças o ar circula mais. Abro um pequeno pedaço do vidro à frente, mas outro passageiro logo o fecha. Faço esforço para cochilar e as coisas melhoram um pouco.

Atrás de nossos assentos o sol nasce. O chapa pára em frente à ponte e, agora, atravessa. Mal acredito. Mesmo em cima da ponte, no entanto, continua indo e voltando para pegar pessoas e encher o carro, que já está lotado. Chegamos ao ponto final às 5h30 e faço a baldeação para o chapa que nos levará até Nampula. Nossas malas são colocadas no capô, amarradas por cordas. A espera para a partida é longa e, nessas situações, todo cuidado é pouco. Há batedores de carteira, ladrões de malas e os que se aproveitam da lotação para furtar bens dos passageiros distraídos. Em alguns terminais de chapas foram, inclusive, instalados postos policiais.

Sento no último banco, o único com lugares vagos. No espaço em que deveriam ficar quatro pessoas, se equilibram cinco. Ao meu lado, uma mulher muito bonita carrega um bebê que chora. A sensação não é, nem com muito esforço, melhor do que a do carro anterior. Ao contrário, o cheiro de peixe parece mais intenso agora. A viagem é longa, o cheiro é insuportável, cada vez mais pessoas entram no chapa e se empoleiram. Conto mais de cinqüenta passageiros.

Mercados de estrada

Pela estrada, paramos em todas as pequenas cidades que ficam no caminho entre a Ilha de Moçambique e Nampula – capital da província. Em cada uma das paradas, enquanto homens e mulheres descem do veículo para fazer xixi no mato, as janelas do chapa são invadidas: por cheiros de frutas e por vendedores de guloseimas, de legumes, de bebidas alcoólicas, de galinhas vivas, de carregadores de celular, de sapatos, de relógios, de capulanas, de bonés, de perfumes falsificados, de todo tipo de produto que se possa imaginar. Sempre há vendedores de limão e de ovos. Inicialmente, me pergunto para quê alguém na estrada compraria um ovo e como esse ovo chegaria inteiro ao destino. Mas logo percebo que aqueles ovos são cozidos. O passageiro compra, o vendedor quebra a casca na parte de baixo e coloca ali o tempero que o consumidor desejar: uma pitada de sal ou de piri-piri, a pimenta de Moçambique. Logo, aos passageiros se juntam também sacos e mais sacos de todos os tipos de frutas e de legumes, algumas cascas de ovos e até galinhas vivas.

Do lado de fora, assistimos a um fenômeno social. Para fugir do desemprego e tentar sobreviver, cada vez mais pessoas se aglomeram pelas estradas do país, vendendo todo tipo de gêneros. Os vendedores desafiam veículos em movimento e chegam a atravessar a rodovia correndo com seus produtos na cabeça, para convencer o cliente que está do outro lado a comprar. E desafiam também outros vendedores: cada um tenta vender a um único passageiro todos os produtos que possui, de tal maneira que este fica tão atrapalhado que muitas vezes se vê comprando algo desnecessário.

São jovens de todas as idades, crianças, velhos, homens e mulheres. Nos mercados de estrada, não há distinção entre os vendedores. A mesma insistência e correria faz parte deles. O que muda de uma parada para a outra são os cheiros: de limão, de mandioca, de goiaba, de banana, de castanha, de pão, de ovo, de peixe frito, de carne assada. Todos esses guerreiam com o cheiro do próprio chapa – com mercadorias dos mais diversos gêneros e lotado de perfumes naturais.

De volta


Há tempos não relia os textos publicados neste blog. Coincidentemente, a previsão para 2007 não estava errada. Com comilanças pelo mundo, engordei 6 quilos - que quase já perdi. E o melhor de tudo: dei início à minha trajetória culinária com um cuscuz muitíssimo bem feito. É verdade que depois dessa experiência não tentei cozinhar mais nada... mas pra que mexer no que já está bom?

Minhas vontades de escrever são mais do que inconstantes. Por isso esse vai e volta de tantas vezes em um único blog. Hoje, surgiu a vontade lendo o blog de um jornalista fotográfico português, que foi para o Afeganistão fazer uma reportagem sobre as tropas portuguesas no país (!). Apesar da origem da viagem, o blog é interessante por trazer algumas histórias do que ele tem vivido por lá. Para quem se interessar, o link é: http://visao.clix.pt/default.asp?CpContentId=333811.

E a vontade, claro, não é desinteressada. Vou colocar aqui, nos próximos dias, alguns dos textos que fiz em Moçambique (coincidentemente, também, o blog se chama "Diários de Cabul" e o meu trabalho se chama "Diários de Moçambique" - puta falta de criatividade, pelo visto). Enfim, meus textos africanos são bastante parecidos com o que é possível ver no blog português. Se a tecnologia ajudar e não travar meu computador de novo, coloco inclusive fotos com os relatos!