quinta-feira, novembro 29, 2007

Uma mulher moçambicana

Paulina Chiziane fala baixo, como se ninasse um bebê. É escritora e trabalha em um programa das Nações Unidas para a promoção da mulher na Zambézia, uma das províncias de Moçambique. Hoje está vestida como manda a tradição: uma roupa colorida, feita com panos de capulana.

Conversamos em uma tarde de sol, na pensão em que me hospedei em Quelimane, capital da província. Ela fala da condição da mulher, das diferenças que existem entre as regiões do país, das influências que recebeu para se interessar pela luta das mulheres. Seu único livro publicado no Brasil, pela Companhia das Letras, se chama Niketche: uma história de poligamia.

Como começou a sua luta pelos direitos da mulher em Moçambique?

Paulina Chiziane (PC): Nas sociedades como a nossa, onde há guerras, catástrofes, migração assídua, os homens vão embora. As mulheres ficam e são elas que movem a vida. Mas quando chega a hora de retratar a mulher, de lhe dar algo, os homens são ausentes. Constato isso por toda minha vida. Descubro que existe o mundo da mulher que ninguém conhece ou que poucos conhecem; ou que só as próprias mulheres conhecem. Há de ser por isso que entrei nessa luta.

Você costuma dizer que existe uma diferença grande na relação homem-mulher e na maneira como as mulheres se vêem no sul e no norte do país. Como se dá essa diferença? Isso é marcante ainda hoje?

PC: É uma situação absolutamente atual. Aqui na Zambézia (e daqui para o norte do país) temos cidades marcadamente matriarcais. As mulheres têm voz mais ativa, têm um lugar social e têm algum poder. Por exemplo, quando vou às comunidades rurais desta província encontro histórias de mulheres que dizem: “eu não tenho uma relação sexual com meu marido há dois meses e por isso convoquei uma reunião de família”. Eu nunca tinha imaginado que isso acontecesse, mas aqui no norte acontece. O prazer sexual é um direito importante da mulher e as pessoas falam disso abertamente, nos seus grupos. Convocam a família para expor a situação.

Convocam a família dela ou a do marido também?

PC: A família dela primeiro, para discutir a questão. Depois desse passo, os mais velhos se responsabilizam por levar as informações para a família do marido, propondo uma solução. É incrível. Já no sul do país isso acontece pouco. Se o homem é impotente, não tem um desempenho saudável, a mulher tem que suportar, porque ela foi adquirida para isso, para suportar e mais nada. Até na maneira de se vestir as mulheres do norte são diferentes. Elas têm um colorido que alegra.

O vestuário tem a ver com a relação delas com o marido? Com o pai?

PC: Sim, tem a ver com a visão da vida e do mundo. Para elas a mulher tem que ser bela, alegre, agradável, sexualmente satisfeita. Nós não. Eu sou do Sul, e no sul a mulher tem que dizer “sim” a todas as coisas. A mulher é algo que deve ficar guardado em um cofre ou no guarda-roupa.

E você sabe me dizer qual é a origem dessa diferença?

PC: O sistema matriarcal. A partir da Zambézia, caminhando para o Norte, todas as regiões são matriarcais. A linhagem é pela via feminina. Quando há um casamento é o homem que se desloca para a família da mulher e lá fica, constrói a família e a casa. Quando os filhos nascem ganham o sobrenome da mãe e quando o casamento se dissolve é o homem que parte. As decisões desta região matriarcal não pertencem especificamente à mulher, mas ao irmão dela, ao tio dela. Assim, claro, decidem a favor da mulher. É por isso que elas possuem um estatuto que as mulheres do sul não têm. Também é interessante a abordagem das relações amorosas. No sul, a mulher faz de tudo: penteia-se, pinta-se, faz danças na frente do homem para que ele lhe diga algo. No norte não. A mulher diz ao homem: “gostei de ti, quero casar contigo, tranqüilamente”. (risos) De uma forma aberta, clara. Às vezes chega a dizer: “o senhor passou por aqui e não me viu, mas eu vi e gostei. Quer namorar comigo?” Fiquei chocada no princípio, mas me habituei. Se no sul uma mulher faz isso, recebe os apelidos mais horríveis. No dia seguinte todos falarão mal dessa mulher.

Existe um trabalho grande de conscientização com relação ao vírus HIV: cartazes pelas ruas, desenhos nas calçadas, propagandas na televisão... Esse trabalho alcança a população?

PC: Nós tivemos uma guerra terrível. A guerra acabou, mas agora temos a malária. É impressionante o número de pessoas que morrem com a malária, é impressionante o número de pessoas que morrem com cólera. Valerá a pena fazer a prevenção? Essa é a questão que fica na cabeça das pessoas. Infelizmente, mesmo a campanha sendo tão grande, o número de infectados não pára de aumentar. Acredito que seja por causa disso.

Qual a relação das mulheres com a religião, atualmente?

PC: Quando o país ficou independente, o sistema socialista adotado colocou em causa todas as igrejas e religiões: islâmica, tradicional, cristã. À medida que aumentou a guerra civil, o desespero foi grande e muitas pessoas se voltaram novamente para a religião. Hoje, a igreja tem um peso muito forte. É uma das novas formas de identidade.

E no mercado de trabalho, quais as mudanças para as mulheres?

PC: É um processo. Cada vez mais mulheres vão trabalhar e cada vez em melhores posições. Em toda a história de Moçambique, a mulher nunca esteve tão bem como agora. Somos um dos poucos países africanos onde a posição da mulher em termos políticos e em termos sociais é boa. A libertação nacional colocou a mulher em um campo de batalha, ela participou da guerra: foi o primeiro grande passo. Depois, a orientação marxista colocou a comissão da mulher na agenda política e alterou a legislação. Houve campanhas para a educação das raparigas. Hoje as mudanças são visíveis: temos um bom número de mulheres governando. Temos uma primeira ministra, uma das coisas mais extraordinárias que aconteceu no nosso país. Nas empresas privadas a mulher também conquistou postos de poder. Nas zonas rurais, entretanto, a situação ainda é diferente. As mudanças demoram a chegar. Mesmo assim, há um bom número de mulheres que sabem ler e escrever. Nas zonas matriarcais, há ainda as chefes tradicionais, chamadas de rainhas. A liderança da maior parte dos grupos tradicionais se concentra nessas mulheres. Mas o poder delas não significa riqueza. Entre a casa da rainha e a casa vizinha não se notam diferenças.

E como é a vida dessas rainhas? Qual o papel delas na sociedade?

PC: Em abril fui a uma região afetada pelas cheias, e tive que trabalhar com uma rainha. Quando ela chegou, eu pensei: “meu Deus, mas o que ela tem de rainha?”. Tínhamos que fazer palestras sobre a Aids, porque havia uma concentração de pessoas que não se conheciam, que fugiram das cheias e se concentravam ali. Tínhamos que fazer a distribuição de itens básicos de alimentação e higiene, mas estava uma confusão enorme. Todos queriam ser os primeiros. A polícia estava presente, os chefes formais também, mas ninguém conseguiu controlar a situação. Nesse momento a rainha disse: “sentem-se”. Apenas levantou a mão e todos se sentaram. E completou: “a distribuição será feita por famílias. Vou chamar as famílias da zona do Sol Nascente. Levantam-se!” Levantaram-se somente as famílias chamadas e foram buscar a sua comida, o seu sabão, na maior ordem. “Agora levantem-se os do Sol Poente!” Foi impressionante, não houve quem pudesse controlar a população da forma como aquela mulher fez. Nas crenças da população, essa chefe tradicional (escolhida por linhagem) é uma espécie de guardiã, nomeada divinamente. Para a comunidade, ela é a pessoa que estabelece pontes entre os antepassados (mortos) e os vivos. O poder da liderança feminina tradicional existe nessas regiões. E é único. Tudo isso faz parte da profissão da mulher. Há histórias interessantes que envolvem esse poder tradicional. Lembro-me de uma vez em que havia uma reunião local. Estavam presentes uma ministra e as rainhas tradicionais. A ministra, com todo o poder do Estado e das academias européias, apontou para uma das rainhas tradicionais para que ela se pronunciasse. A mulher simplesmente olhou e não abriu a boca. A ministra insistiu: “é consigo que estou a falar”. Nesse momento se levantaram alguns homens e disseram: “na nossa terra, na nossa tradição, ninguém pode apontar o dedo e ordenar qualquer coisa à nossa divina representante. Ela é nossa rainha!” A ministra não pôde dizer mais nada. Para mim, há momentos em que parece haver inveja, conflitos entre o poder formal e o tradicional. O poder tradicional é muito forte em nossa terra.

Existe alguma representação dos poderes tradicionais no estado formal?

PC:
Existe, mas é algo carnavalesco, só para fazer festa.

O principal ponto desse poder é a ponte entre os antepassados e os viventes?

PC: Exato. E é bom ver que as pessoas veneram o seu líder (ou a sua líder), porque é uma pessoa igual a elas, que vive e sofre como elas. Os chefes preferem ficar sem nada para que os outros tenham. Posso me enganar, claro. Os seres humanos são complexos e há pessoas que abusam do poder que têm por causa de suas ambições. Mas, quando comparo os dois poderes...

Sobre o futuro da mulher moçambicana, ainda existem tabus que impedem a igualdade de direitos? Como você vê a sociedade daqui para frente?

PC: Os 30 anos de independência mostraram que a vida da mulher pode mudar para melhor. Ela pode ter um bom emprego, um bom salário etc. Mas também pode piorar, porque a mesma mulher que vai ao parlamento tem de voltar à casa para cozinhar, lavar e cuidar dos filhos. À medida que a mulher tem acesso ao novo mundo e a novos recursos, a sobrecarga na vida dela aumenta. O que está a acontecer com algumas mulheres é que elas lutam, vencem, e o produto do seu trabalho vai para as mãos do homem, que depois diz: “como não tens tempo para estar aqui, fui arranjar a segunda mulher”. Quantos casos de mulheres que eu conheço não são iguais a este? O marido pegou o dinheiro dela para ir casar com uma nova mulher, “porque não tens tempo para lavar, para cuidar de mim... Já que tens muito jeito para trabalhar, vai. Agora arranjei uma para me fazer café, pão”. É a nova escravatura das mulheres. A situação muda na aparência e há sempre outras formas de dominação. As mulheres modernas são máquinas de trabalho, não têm tempo para cuidar da casa. Trazem mais pão, que depois vai para as mãos de uma outra mulher que não trabalha. É um horror! Mas a situação vai melhorar. Temos um governo que defende a posição da mulher, a legislação tende a mudar cada dia para melhor. Ainda ontem assisti à graduação em um curso de formação de médicos, onde 46 pessoas eram mulheres. Isso era impensável há seis anos. Primeiro o diploma, depois o emprego e, por fim, a libertação da escravatura. Já os hábitos tradicionais são muito mais difíceis de mudar, mas a legislação está caminhando e a mudança virá. Estou com otimismo.

*entrevista concedida por Paulina Chiziane em maio de 2007

segunda-feira, novembro 12, 2007

Crédito para dar, vender e endividar

Cartões de loja incentivam o consumo exagerado, aumentando os lucros do comércio e o endividamento da população. Principal usuário desse tipo de crédito é o trabalhador que recebe até três salários mínimos mensais

"Boa tarde. A senhora possui o Cartão Sonda? Se quiser, pode fazer agora mesmo, sem cobrança de anuidade”. Quem nunca foi parado em um supermercado ou em um grande magazine e recebeu insistentes propostas para fazer um cartão da loja que levante a mão. A última moda é oferecer anuidade grátis, o que pode ser bastante tentador à primeira vista. No entanto, não há cartões em que o consumidor de fato não arca com custos. Sai a anuidade, entram taxas de manutenção, de utilização e tantas outras.


No caso do supermercado Sonda, rede de 12 lojas na Grande São Paulo, a oferta é por um cartão sem anuidade. A atendente não dá mais informações, que só podem ser conseguidas no balcão de informações ou lendo o folheto publicitário. A aquisição do crédito implica em um custo de manutenção de R$ 3,90 toda vez que houver emissão de extrato, ou seja, sempre que for feita alguma compra com o cartão, que também pode ser utilizado fora dos estabelecimentos Sonda. Se utilizado todo mês, o desembolso será de R$ 46,80 no ano – valor que não fica para trás das taxas de anuidade cobradas no mercado.


Mas como cada rede de lojas adota uma política diferente, o importante é ficar atento, perguntar sobre custos e questionar a cobrança de qualquer tipo de taxa não especificada na hora da contratação. No geral, é possível encontrar o valor das cobranças em letras minúsculas no contrato ou nos folhetos publicitários. Poucos dos responsáveis por vender o serviço, no entanto, alertam sobre tarifas, apesar de o Código de Defesa do Consumidor (CDC), em seu artigo 6º, assegurar o direito de receber informações adequadas e claras sobre os serviços ofertados.


No Carrefour, por exemplo, a anuidade é grátis, mas é cobrada uma taxa de R$ 1,99 toda vez que houver movimentação com o cartão – que pode ser usado na rede de supermercados, nos postos de abastecimento Carrefour e em lojas credenciadas. O problema, em casos como esse, é o consumidor só descobrir a existência da taxa quando chegar a primeira fatura.


Os estabelecimentos, ainda, oferecem cartões diferentes aos clientes: alguns podem ser usados apenas na própria rede, como é o caso dos cartões das Lojas Marisa; e outros podem ser usados na rede e em estabelecimentos credenciados, como o do Carrefour e o do Sonda. Para o consumidor, praticamente não há diferenças entre os modelos.

“Fazer com que o private label (como é chamado o cartão que só pode ser usado em determinada loja) seja aceito em outros estabelecimentos é uma questão estratégica e envolve custos. Ampliar a utilização traz benefícios aos clientes, por não precisarem carregar outros cartões, mas também traz receitas ao varejista, que recebe porcentagem de vendas”, afirma André Alexandre Alves, especialista em marketing de varejo pela USP (Universidade de São Paulo).


A utilização do crédito em outro varejista, entretanto, faz com que o limite para ser usado na própria rede fique menor. Por isso, muitos preferem que o cartão seja válido exclusivamente em suas lojas. Outros, resolveram a questão estabelecendo limite para uso fora da rede. O consumidor, no meio de tudo, precisa tomar cuidado para não ver nos cartões de loja seus grandes aliados e acabar endividado.

Pontos de relacionamento

Com a explosão do crédito pessoal no início dos anos 2000, as maneiras de agarrar o consumidor se tornaram mais eficazes. Tanto que hoje mais de 128 milhões de cartões private label estão em circulação no país. Em junho do ano passado, eram 107 milhões, ou seja, o crescimento foi de 19% em apenas um ano. O número de transações e o valor das compras com a modalidade cresceram na mesma proporção, com aumento de 17%. O volume de operações passou de 308 milhões para 360 milhões, enquanto o valor das compras subiu de R$ 15,2 bilhões para R$ 17,8 bilhões na comparação entre o primeiro semestre de 2006 e o de 2007. Os dados são da Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Crédito e Serviços (Abecs).


Se considerarmos que a população economicamente ativa não chega a 98 milhões de pessoas, é fácil imaginar o quanto esses cartões contribuem para o endividamento de milhões de brasileiros. “Existem varejistas onde o private label representa mais de 70% das vendas. Por outro lado, é também uma ótima oportunidade de relacionamento com os clientes”, afirma Alves.


Para aumentar as vendas, no geral, oferecem parcelamento de compras sem juros em mais vezes do que é oferecido nos cartões de crédito comuns. A rede de supermercados Bistek, de Santa Catarina, chega a oferecer 70 dias para pagar a compra à vista e financiamento de até 90% do saldo devedor da fatura. Assim, o cliente acaba comprando mais, pois os longos prazos permitem parcelas mensais que cabem no orçamento.


Já para fidelizar clientes, as redes acabam condicionando o pagamento da fatura à ida de uma das lojas, além de armazenar todos os dados das últimas compras realizadas e de oferecer pontos de relacionamento que podem ser trocados por prêmios. Nas Lojas Marisa, magazine de roupas femininas presente em todo o país, por exemplo, os cartões só podem ser usados no site da empresa ou na própria rede e, para quitar o boleto, é necessário ir até uma das lojas. O cartão também oferece anuidade grátis e cobra uma taxa de processamento de fatura (a mesma coisa que taxa de manutenção ou de extrato) no valor de R$ 1,95, toda vez que houver débito no cartão.


Mas o que dá lucro mesmo para as empresas nesse tipo de cartão são as taxas de refinanciamento – responsáveis, portanto, pelo endividamento e parte dos consumidores. Uma conta que deveria ser paga em outubro, por exemplo, fica só para novembro ou dezembro e, para refinanciar o débito do cliente, a loja cobra juros bem altos. No caso das Lojas Marisa, cobra-se taxa de refinanciamento de 9,98% ao mês, mais multa de 2% e mora de 1% ao mês. São ainda cobradas tarifas “de entrada em cobrança com 10 dias em atraso” (R$ 3,05) e “de manutenção em cobrança com 30 dias de atraso” (R$ 2,75).


Endividamento

Para muitos, os cartões de loja acabam sendo a única forma de comprar. Cerca de 40 milhões de brasileiros não possuem conta bancária e precisam trabalhr apenas com dinheiro – ou aderir aos private label.


Lurdes (nome fictício) é aposentada e vive no bairro do Campo Limpo com seus três netos. Recebe aposentadoria, que mal dá para cobrir as despesas. Para comprar roupas e eletrodomésticos, fez cartões das Lojas Pernambucanas e das Casas Bahia. Para a comida, fez também outros dois: do Extra e do Carrefour. Questiono se ela consegue administrar os cartões, para não acumular dívidas e a resposta pode desanimar quem acredita que pode conciliar muitos cartões de loja: “não tenho muito o que fazer, sem os cartões não consigo comprar, mas com eles, também não consigo ficar sem dívidas. Tento apenas dividir os pagamentos, para ter algum cartão disponível”.


Para Alvez, “a educação financeira é incipiente no Brasil e o consumismo é amplamente divulgado. É possível ter vários cartões de loja na carteira, desde que a somatória de gastos caiba no orçamento”. Mas essa é uma tarefa difícil. A responsabilidade, no fim, é exclusiva do consumidor, que precisa administrar suas contas e resistir aos apelos consumistas.

segunda-feira, outubro 01, 2007

Não embarque nessa aventura

Mais de metade das crianças opina sobre o consumo familiar, escolhendo produtos e até marcas para uso próprio e da casa. Elas sabem como persuadir os pais e a publicidade exerce forte influência na hora da decisão

As crianças brasileiras passam, em média, 40 horas por semana em frente à televisão. Se considerarmos que elas nunca vão assistir a uma superalface mostrando seus poderes ou a um tomate que prometa energia para ser forte como um leão, a constatação é preocupante. Os personagens publicitários mais irresistíveis são, no geral, os que apresentam guloseimas, refrigerantes e brinquedos caros, convencendo crianças e até a família inteira a consumir.

Elas escolhem por critérios subjetivos, como gosto, emoção e imagem da marca. Cerca de 80% das mães latino-americanas, por exemplo, permitem que seus filhos escolham bolachas e chocolates preferidos; 70% delas também aceitam a decisão na compra de iogurtes e 61% ampliam a permissão para bebidas e sucos. Os dados são da pesquisa mais recente sobre consumo infantil da TNS (Taylor Nelson Sofres, instituto britânico de pesquisa vice-líder no ranking mundial de empresas de pesquisa de mercado), que conversou com famílias da Argentina, Brasil, Chile, Guatemala e México. Se elas podem decidir, vão querer o pacote de bolachas com mais nutrientes e menos gordura e sódio ou aquele em cuja publicidade ocorrem as mais incríveis armações quando se come a bolacha? Os índices alarmantes de obesidade na população infantil de todo o mundo respondem facilmente.

“As crianças estão muito expostas a estímulos e, principalmente as de classes mais altas, têm consciência de seu poder frente aos pais. Logo no primeiro contato com o mundo do consumo, que será com os gêneros alimentícios, elas vão se manifestar”, afirma Ivani Rossi, diretora de planejamento da TNS. Hoje as marcas se comunicam diretamente com a criança e são bem mais agressivas do que anos atrás. Por isso, é importante ensinar sobre a importância do consumo consciente e sobre o papel da publicidade. É assim que Eliana procura conscientizar os dois filhos do que pode ou não entrar no carrinho do supermercado. “Eles batem o olho na prateleira e sabem o que querem. São muito guiados por comerciais, então preciso explicar e convencê-los de que nem todos os alimentos que viram na TV ou que trazem brindes são bons para a saúde”.

A “contra-educação”, no entanto, é muito forte. Quase metade das publicidades veiculadas nas duas maiores emissoras de TV do país, durante o horário infantil, é de guloseimas. Do restante, cerca de 20% é de bebidas não-lácteas, como refrigerantes. Todas tentam agregar valores emocionais ao produto, usando personagens infantis, apresentadores de TV famosos, cores fortes, objetos para colecionar e brindes, e conseguem chamar atenção. “A publicidade influencia porque diz às crianças que serão mais felizes se tiverem um produto ou usarem um serviço. Cria vontades e desejos. Funciona como com os adultos, com a diferença de que os menores não compreendem a complexidade das relações de consumo, não sabem que não precisam ter produtos ou serviços para serem felizes e integrados ao grupo. Acreditam no que ouvem”, afirma Isabella Henriques, coordenadora do Projeto Criança e Consumo, do Instituto Alana. Pesquisas internacionais apontam que 30 segundos são suficientes para uma marca influenciar. Com horas e horas de comerciais em meio aos programas infantis, é fácil imaginar a destruição causada.

Consumo x consumismo

A criança se torna consumidora no momento em que acompanha os pais pela primeira vez nas compras. A partir daí, “sente-se parte integrante da família quando consegue influenciar. Pode não ter noção de marca, mas escolhe produtos para se inserir e destacar”, comenta João Osvaldo Matta, consultor sobre marcas, produtos e serviços infantis e professor de marketing da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing, de São Paulo).

Os adultos funcionam como modelos e influenciam comportamentos consumistas. Mas, sem dúvida, a comunicação do mercado – incluindo embalagens, merchandising, produtos nas prateleiras mais baixas do supermercado e a própria publicidade – têm significativa parcela de influência na formação de hábitos não saudáveis.

As conseqüências são várias e podem ser desastrosas. Estimula-se não apenas o consumo, mas o exagero, o consumismo. “Sob o ponto de vista ambiental, se o planeta continuar no ritmo de hoje, serão necessárias mais quatro Terras para que os recursos sejam suficientes. Até essas quatro serem consumidas e serem necessárias mais quatro”, afirma Isabella.

Na área médica e de saúde, a insustentabilidade também está a caminho. Dados da Obesity Reviews, veiculados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) , relacionam diretamente divulgação de alimentos a obesidade infantil. No Brasil, 30% das crianças estão com sobrepeso e, dessas, 15% são obesas. Em contrapartida, mais de 80% das publicidades de alimentos infantis são de produtos calóricos e pobres em nutrientes. Confira ao longo da reportagem exemplos de publicidade que não fazem nada bem para a saúde das crianças. A seleção foi feita por um grupo de pesquisa da Universidade Federal de São Paulo – Escola Paulista de Medicina (Unifesp), coordenado por José Augusto Taddei e Tatiana Elias Pontes.

O caráter de exclusão de todo tipo de publicidade, deixando de fora os que não podem comprar determinado produto ou serviço, pode ainda ser causa de criminalidade. “Prometer felicidade com o consumo e criar expectativas não é ético. Exclui quem não consome, porque a pessoa não vai alcançar a felicidade prometida. Em última análise, pode levar à marginalização e à violência”, afirma Sérgio Miletto, produtor cultural e coordenador da campanha “Quem financia a baixaria é contra a cidadania”.

Para Noemi Friske Momberger, advogada especialista em publicidade infantil, os comerciais são os principais culpados pelo consumismo. “Não basta trocar de canal: é preciso proibir a publicidade e melhorar a qualidade dos programas. Só assim será possível formar cidadãos que não se voltem para o consumo desenfreado”.

Quem precisa da publicidade infantil?

O artigo 37 do Código de Defesa do Consumidor (CDC) deixa claro que “é proibida toda publicidade enganosa ou abusiva que (...) se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança”. Antes dos 10 anos, poucas conseguem entender que a publicidade não faz parte do programa televisivo e tem como objetivo convencer o telespectador a consumir. Dessa forma, comerciais destinados a esse público são naturalmente abusivos e deveriam ser proibidos de fato.

Mas a discussão é intensa: de um lado, militantes dos direitos infantis afirmam que é imperativo proibir qualquer anúncio para menores de 10 ou 12 anos; de outro, há quem acredite que proibir é censura. Entre eles, ainda, há os que defendem a regulamentação como a melhor escolha.

Para Noemi, as autoridades não se deram conta das armas que têm em mãos. “O CDC e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) proíbem publicidade infantil expressamente. Não é possível que agora os empresários queiram considerar censura respeitar o que está previsto na legislação”. A argumentação de censura acaba aparecendo como uma nuvem de fumaça que o mercado publicitário tenta jogar na discussão. A publicidade não é manifestação de pensamento: é atividade econômica e deve ser regulada.

Já Osvaldo Matta (ESPM) acredita que “proibir totalmente é preguiça de refletir. Sou a favor da restrição. As mudanças vêm caminhando lentamente, devíamos acelerar o processo e tornar a discussão mais madura, pois precisamos de um equilíbrio”. Um ponto interessante a ser levantado, de acordo com o consultor é: de que vale proibir a publicidade se todos esses produtos continuarão nas prateleiras, sendo colocados nas alturas ideais para chamar a atenção e sofrendo recalls por irregularidades de fabricação?

O ideal seria o Poder Executivo atuar mais na área. No Legislativo, havia até um projeto de lei (nº 5921/01), do deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR), que pretendiaguiar as ações do governo e tinha por objetivo proibir toda a publicidade que promovesse a venda de produtos infantis.

A própria Anvisa, ao final de 2006, realizou uma consulta pública a respeito de uma proposta de regulamentação da publicidade de alimentos, mas uma resolução final ainda não veio à luz. A regulamentação visaria especificamente à publicidade de alimentos com quantidades elevadas de açúcar, sal, gorduras trans e gorduras saturadas. Enquanto isso, apresentadoras de programas infantis, empresários e emissoras de TV atingem lucros exorbitantes. Só em 2002, por exemplo, os cerca de trezentos itens da marca Xuxa no mercado renderam à apresentadora a soma de R$ 30 milhões. “Nossas apresentadoras exploram a credulidade, a ingenuidade, o sentimento de lealdade que as crianças têm por elas. Será que seu filho precisa de um caderno com a foto da Xuxa ou da Eliana? Quem ganha com isso?”, questiona Noemi.

Como funciona lá fora

No Reino Unido, um produto que custe mais de 15% do salário mínimo (menos de R$ 60 no Brasil) é considerado muito caro e não pode ser divulgado para crianças. Artistas, marionetes, personagens de desenho animado e apresentadores de TV são proibidos de fazer comerciais para crianças e não pode haver merchandising no período de duas horas antes ou após programas infantis. A publicidade também não pode estimular que a criança coma perto do horário de dormir.

Já a Grécia proibiu a publicidade de brinquedos na televisão entre 7h e 22h; e Bélgica e Holanda proibiram publicidade durante a exibição de programas infantis. O Canadá limita o tempo em que as emissoras podem veicular publicidade por hora. E o Chile, por exemplo, tem regras para que a publicidade respeite a ingenuidade e credulidade dos pequenos e a inexperiência dos jovens.

Ao contrário, no nosso país, muitos programas infantis vivem à custa do merchandising, que nada mais é a publicidade de produtos diluída na programação normal, prática que torna ainda mais difícil o discernimento por parte da criança. Infelizmente, não há determinação no CDC que proíba essa prática. Há programas dedicados exclusivamente ao oferecimento de brindes às crianças que acertarem uma resposta ou ganharem uma brincadeira. É claro que o “brinde” não é oferecido sem antes os apresentadores ressaltaram as qualidades do brinquedo e fazerem publicidade da marca. Outro problema, como acontece constantemente, é o lançamento de linhas de produtos baseadas em personagens infantis. Em 2000, pouco antes da estréia da série do “Sítio do Pica-Pau Amarelo”, na Rede Globo, foram lançados cem itens que remetiam aos personagens do programa. Para muitos estudiosos, entretanto, nenhuma dessas jogadas de marketing seria necessária para manter as redes de televisão, já que o grosso de seu lucro vêm da publicidade para adultos e não da dirigida a outros públicos.

A discussão prossegue, mas o consumidor tem em mãos o poder para reclamar do que considerar abusivo. Qualquer irregularidade publicitária pode ser comunicada ao Ministério Público e ao Poder Judiciário, ou denunciada ao Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC), aos Procons e até ao Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária (Conar).

Publicidade para a criança que existe dentro de você

Não é só a publicidade infantil que pretende levar o consumidor a um mundo mágico e encantador. Diversos comerciais de produtos e serviços para adultos utilizam personagens e bonecos infantilizados para chamar a atenção. Alguns dos mais marcantes são os de bancos – que, convenhamos, não têm nada a oferecer ao público infantil. Os últimos comerciais do Unibanco, por exemplo, usam personagens. “Há publicidades ambíguas, que não são focadas na criança, mas na criança que há dentro de cada adulto. O ambiente bancário se transforma em algo mágico e tranqüilo e um pai acaba se influenciando por ver naquele ambiente algo ideal para seus filhos. Há um apelo forte, mas não direcionado diretamente às crianças”, explica Osvaldo Matta.

Trakinas Trakmix

Na publicidade televisiva, duas crianças apresentam um show de mágica para a família. O truque é o desaparecimento de um pacote inteiro de bolachas Trakinas Trakmix. É um bom exemplo do quanto a publicidade de alimentos pode ser prejudicial. O consumo de 100 gramas desse biscoito (pouco mais de três pacotes) fornece 60 gramas de carboidratos e 420 calorias, cerca de 25% da ingestão diária recomendada para crianças entre 7 e 10 anos, além de fornecer 96% da quantidade de sódio necessária. Outro ponto negativo é o preço do produto, que fica na faixa de R$ 27 por quilo. Além de tudo, a publicidade incentiva o consumo exagerado, já que as crianças acabam com um pacote do produto em poucos minutos.

Iogurte Chamito + Cereais coloridos

Um garoto, acompanhado de um gênio, arremessa uma bolinha colorida de cereal com um estilingue e ela percorre todo o mundo, caindo de volta na embalagem do Chamyto. Para comemorar, ele saboreia o iogurte. Nesse produto, encontramos 10% da recomendação diária de calorias e de carboidratos, e quase 20% do máximo que pode ser consumido de gorduras saturadas por uma criança em idade escolar. A própria Nestlé comercializa iogurtes mais saudáveis e mais baratos, pouco divulgados para o público infantil.

Refrigerante Schin com 250 ml

Personagens de um desenho infantil mergulham na embalagem do Mini Schin e todas as crianças aparecem bebendo o refrigerante durante a publicidade. Por ser um alimento que oferece apenas açúcares, não é nutritivo e não deveria ser divulgado (e nem comercializado) para crianças. O rótulo do produto, ainda por cima, baseia as porcentagens de nutrientes em uma dieta recomendada para adultos (isso ocorre com muitos alimentos, diga-se). Como tem por alvo o público infantil, deveria alterar o rótulo para a indicação com base em dieta de 1750 calorias diárias. É importante lembrar que o produto possui muitos corantes artificiais, que podem fazer mal à saúde pelo consumo a longo prazo.

Nescau Cereal

Quatro garotos conseguem fazer passes mirabolantes com bola enquanto comem o produto. Um deles consegue até chutar a bola em direção à parede com força para deformá-la. Apesar dessa “força” que o cereal parece dar às crianças, ele possui quase apenas carboidratos. Uma porção de 30 gramas chega a 7% da quantidade recomendada de carboidratos para crianças de 7 a 10 anos. O mais chocante, no entanto, é que um produto que se diz “cereal” não chega a ter nem 1 grama de fibra por porção – nutriente naturalmente encontrado nos cereais. O preço também é bem caro, sendo de aproximadamente R$ 24 por quilo.

Mc Lanche Feliz

A publicidade analisada foi da época em que o produto trazia como brinde personagens do filme “Carros”, da Disney-Pixar. Trazia cenas do filme e comentários de duas crianças pequenas sobre os “incríveis” brindes. Além de ser um produto nada nutritivo, a publicidade anula o papel dos pais na escolha da alimentação, com a idéia de que se eles dão brinquedos são mais legais que os pais, e ainda deixam a criança comer o que ela gosta – hambúrguer, refrigerante e batata frita.

Salgadinhos Yokitos

O Jakaroki (mascote da marca) surfa muito bem e consegue escapar de um tubarão. Depois da aventura, come o salgadinho na praia, descansando na sombra. Esta é outra publicidade que não deveria ser veiculada, pois o produto não traz benefícios para as crianças. Possui alta quantidade de gorduras e, diferentemente do que alardeia no rótulo, possui quantidade de fibras muito pequena. A publicidade ainda é enganosa por dizer que o alimento é enriquecido com 9 vitaminas e ferro, mas, de acordo com o estabelecido pela Anvisa, só poderia informar que é enriquecido com três vitaminas (conforme os valores mínimos necessários).

Sucrilhos Kellogg´s sabor brigadeiro

Enquanto uma criança consome o produto, diversos super-heróis se aproximam de sua casa, em clima de festa, e a convidam a participar da animação. Ao final da publicidade é indicado que a edição é limitada, deixando subentendido aos pais de que eles devem correr para comprar ou correm o risco de não experimentar. O principal problema do produto veiculado nesse comercial é ser rico em carboidratos, em sua maioria açúcares. Consumidos em excesso, os açúcares podem causar obesidade, doenças cardiovasculares e diabetes.

quinta-feira, setembro 13, 2007

O Brasil passou do ponto

Está no Código de Defesa do Consumidor: “os órgãos públicos, por si ou suas empresas concessionárias (...) são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes e seguros”. Na prática, isso não é assegurado ao usuário do transporte coletivo, principalmente de ônibus.

Pense no caminho entre sua casa e o ponto de parada de ônibus mais próximo. Quanto tempo você gasta e como são as calçadas no percurso? O ponto de parada possui iluminação, bancos para se sentar, informações sobre veículos e horário em que passam? Os ônibus circulam em intervalos regulares? Geralmente há lugar para se sentar e é possível chegar no horário a compromissos? Provavelmente, as respostas não são animadoras para os mais de 55 milhões de brasileiros que usam diariamente o transporte coletivo.

Os municípios devem regulamentar e fiscalizar os serviços públicos de transporte, delegados a empresas que os prestam por concessão. Também cabe aos governos melhorar condições de vias públicas e de pontos de parada, o que aumentaria a qualidade do transporte, mas pouco é feito. Caminhamos na contramão: a demanda pelo transporte coletivo urbano diminuiu nos últimos anos, principalmente pela ineficiência do sistema e pelas altas tarifas cobradas, gerando círculos viciosos que só pioram a situação dos usuários desse tipo de transporte. “As tarifas são calculadas dividindo o orçamento do serviço pelo número de passageiros pagantes. A elevação de preço reduz o número de pagantes. No reajuste, a ‘conta’ é dividida por um número menor de usuários, pressionando os valores para cima mais uma vez”, esclarece Marcos Bicalho, superintendente da Associação Nacional de Transportes Urbanos (ANTP).

Essa situação seria amenizada com políticas públicas de incentivo ao uso do transporte coletivo. Um bom exemplo, pouco seguido, é o de Curitiba, onde há planejamento integrado de transporte e uso do solo, além de continuidade política das ações de governo, ou seja, uma boa iniciativa não é destruída com a mudança de prefeitos. Já em São Paulo, uma das cidades mais congestionadas e poluídas do país, cinco novos corredores de ônibus (com mais de 50 quilômetros de extensão) serão construídos até 2008. Infelizmente, isoladamente, essa medida tende a não trazer resultados efetivamente benéficos. Políticas que poderiam ser tomadas em conjunto para ter melhores resultados são: a redução do preço do óleo diesel, o subsídio ao transporte de idosos e o planejamento da rede de linhas.

É claro que os governos não têm recursos disponíveis para investir o necessário, mas o que possuem é usado de formas questionáveis. “Salvo raras exceções, as políticas públicas continuam a estimular o crescimento do transporte individual e a penalizar o coletivo, sem contar com a carência de investimentos em infra-estrutura urbana para o transporte coletivo”, critica Bicalho. Além disso, o governo pouco fiscaliza o trabalho das empresas concessionárias, que como grupos privados, se preocupam essencialmente com o lucro. Os direitos do consumidor – como acessibilidade, freqüência de atendimento, tempo de viagem, lotação, segurança, sistemas de informação, estado das vias e comportamento dos operadores – são relegados ao esquecimento.

O que pode ser feito?

Os interesses em jogo são poderosos e a população é o elo mais frágil. Restringir ou encarecer o uso do automóvel, por exemplo, coloca o governo em colisão com a indústria automobilística. Combater o transporte clandestino pode causar choque com setores do Legislativo que assumem práticas clientelistas. Exigir melhores serviços das concessionárias, apesar de ser função dos governos, também causa atritos difíceis de contornar.

Como os problemas são muitos, somente em longo prazo algo vai mudar. No entanto, é direito do consumidor receber um serviço adequado e dever das empresas prestá-lo da melhor forma, com fiscalização dos governos. Entre as muitas políticas que podem amenizar a situação, Érika Kneib, arquiteta urbanista especializada em transportes coletivos urbanos, cita uma em especial: “o processo licitatório do sistema é fundamental para que os direitos dos usuários sejam garantidos. Quando o processo é adequado, o poder público exerce seu papel de gestor e fiscalizador”.

Já para Paulo César Marques da Silva, professor do Programa de Pós-Graduação em Transportes da Universidade de Brasília (UnB), a solução seria inverter as prioridades entre automóvel e transporte coletivo. “Se entendermos o consumidor de transporte como todo cidadão, então seus direitos são os constitucionais de ir e vir. E estão acima do direito individual de usar espaços públicos para fins privados”.

O lucro das empresas também costuma ficar acima dos direitos dos usuários. Elas não fazem política social e só existem se tiverem resultados financeiros positivos. Nesse ponto, é fundamental o subsídio de governos, para que o acesso não fique limitado ao poder econômico de cada cidadão. As soluções do transporte passam, necessariamente, por políticas públicas, e não por questionamentos nas relações de mercado. “Cabe aos usuários fazer reclamações e exigências ao poder público e não às empresas, que são apenas prestadoras do serviço”, esclarece Érika.

Infelizmente, a população nem sempre é ouvida. A aposentada Alice Victor de Oliveira, hoje com 70 anos e associada do Idec desde 1994, já reclamou muito do transporte coletivo de seu bairro, na zona sul de São Paulo. A partir de mudanças feitas na região, muitos ônibus não conseguiam mais passar por uma das ruas do itinerário, estreita e não adaptada para o novo volume de veículos. Com isso, o trânsito parou e os usuários chegaram a esperar mais de uma hora por um ônibus. “Mas eles resolveram a situação. Mudaram o ponto de lugar: agora fica em cima de um bueiro. É um absurdo, as pessoas podem até quebrar o pé na correria. Vamos reclamar de novo”, avisa Alice. E essa nem foi a pior situação que a aposentada viveu como usuária de coletivos. “No ano passado, entrei em um microônibus e me sentei no banco ao lado do motorista. Pouco depois, entrou uma jovem que carregava uma pequena sacola e me obrigaram a descer do ônibus (porque o bilhete não estava habilitado para passar na catraca) e me sentar após a catraca, para dar lugar à jovem. É uma falta de respeito, principalmente pela minha idade. Reclamei, mas esqueci de anotar o número do veículo e a reclamação não valeu de nada”, lamenta.

Apesar das dificuldades, o poder para exigir dos governos as mudanças necessárias está nas mãos dos consumidores. “A primeira exigência é receber informação sobre o sistema e sobre os horários, para ajudar na fiscalização. Também deve-se pedir informação de como é calculada a tarifa. Além disso, pode-se avaliar a capacitação de técnicos e gestores do órgão de transporte da cidade”, orienta Érika. E quando as reclamações não dão resultado, o usuário pode questionar na Justiça. Dessa forma, os órgãos podem ser condenados a cumprir suas obrigações e ainda pagar indenização, conforme o prejuízo apurado em cada caso.

Serviço adequado a todos

Se você é usuário freqüente de ônibus, responda a mais esta questão: quantas vezes entrou em um coletivo que possuía acessibilidade para pessoas com deficiência? Esperar qualquer ônibus é demorado. Esperar um com acesso especial, então, é um teste de paciência. Atualmente, apenas 5% dos ônibus possuem plataforma elevatória (para acesso de cadeirantes), 2% têm piso rebaixado e menos de 2% operam em corredores com plataforma elevatória.

“Não há planejamento do espaço público. As calçadas, por exemplo, funcionam como extensão do espaço privado e não respeitam necessidades especiais das pessoas”, afirma Ana Maria Barbosa, coordenadora da Rede Saci, que discute direitos de pessoas com deficiência. A pesquisadora enfatiza que há muito o que fazer para garantir acessibilidade no transporte coletivo, mas não despreza a evolução no setor nos últimos anos. Para ela, toda adaptação é bem vinda, desde que cumpra as recomendações para acessibilidade e não prejudique nenhum usuário. “Não adianta facilitar a vida de um cadeirante e dificultar a de um idoso”, comenta sobre os ônibus com piso rebaixado e escadas antes e logo após a catraca.

Em julho, o Inmetro divulgou a Portaria 260/2007, que regulamenta as adaptações que devem ser feitas na frota nos próximos anos, garantindo acesso maior. Alguns dos itens contemplados são: características da plataforma elevatória, reposicionamento de bancos preferenciais e adoção de iluminação nos degraus. Boa parte da frota, ao ser renovada, vai contemplar essas modificações. Em São Paulo, por exemplo, ônibus de piso rebaixado e até os que têm escadas antes e após a catraca (que podem ser perigosos para a mobilidade dos idosos) já estão em circulação.

Curiosidades do transporte por ônibus

» A tarifa de ônibus mais barata é a de Belém do Pará, que custa R$ 1,35. A mais cara é a de São Paulo, que sai por R$ 2,30. Mas em termos relativos ao valor da cesta básica, a tarifa de Salvador é uma das que mais compromete o bolso
» Cerca de 37 milhões de brasileiros são excluídos do transporte coletivo por falta de dinheiro para pagar tarifa, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)
» A velocidade média dos ônibus nas grandes cidades brasileiras não chega a 15 quilômetros por hora, quando não há corredores preferenciais
» A frota de ônibus no país atende mais de 55 milhões de pessoas, com menos de 100 mil veículos

* Texto também publicado na Revista do Idec 114, de setembro de 2007

domingo, setembro 09, 2007

Morte do pai de Eva

Ah, vocês, gente do sul – aponta a Lu numa voz acusatória. – Sou sena. Entre nós, os senas, a morte é íntima. Tão íntima como o beijo, como o amor, como o nascimento. A morte diz respeito a um núcleo apenas. Os parentes e amigos apresentam pêsames, mas não se detêm para não serem conspurcados pelo espectro da morte. Aqui no sul, a morte é celebração, é festa. Uma oportunidade boa para comer sem pagar. Com a elevada mortalidade que há, conheço gente que anda de funeral em funeral, a cantar, a chorar, comer e engordar sem a menor despesa. Digam-me vocês todas. Quem vai encher as panças de toda essa gentalha?

Espanta-me a rapidez com que chegaram à conclusão da morte e à urgência de me chamarem de viúva. (...) Entram no meu quarto e desmontam os móveis para abrir espaço e cobrem toda a mobília com lençóis brancos. Arrastaram-me para um canto, raparam-me o cabelo à navalha e vestiram-me de preto. Acabava de perder poderes sobre o meu corpo e sobre a minha própria casa. (...) Chega gente de várias direções numa procissão de formigas. Em poucos instantes enchem-me a casa. Nos dias que correm, dá-se mais valor à morte que à vida e a morte é mais importante que o nascimento. As mulheres gostam de velórios. Nos velórios podem uivar todas as suas dores como lobos na noite, purificam os seus corpos de ácidos, na torrente de lágrimas. Quando a garganta seca e a força se esgota, recarregam a energia com chá e açúcar, pão e manteiga, paga pela família do morto. Os homens gostam de velórios para descansar, jogar ntchuva, damas, cartas, cavaquear sobre política, futebol e mulheres. O velório é um momento bom para vomitar infâmias, exorcizar fantasmas, apunhalar inimigos, rever parentes e velhos amigos e receber algum espólio. Na morte todos se reúnem e choram, mas em vida o homem combate só.
(Niketche: uma história de poligamia, de Paulina Chiziane - Cia. das Letras)

Os soldados e comandantes estão enfileirados. À frente, os músicos tocam uma marcha fúnebre. Uma imensidão de pessoas se aglomera. Os militares apontam suas armas para cima, batem os pés no chão e se voltam para a frente. O movimento se repete duas vezes. Voltam à cena os músicos, que encerram a marcha. Em um comando, a tropa se alinha, dá meia volta e se retira da frente da entrada do local em que acontece o velório do pai de Eva. A multidão se aperta para entrar no recinto e não há ordem por idade, gênero ou raça. Todos querem ir à frente.

Hoje é sexta-feira e a morte dele ocorreu na segunda, um dia após eu me mudar para a casa de Eva. Sou a única branca no velório e me aglomero para participar da cerimônia.

O local em que está o corpo é uma sala de uns 30 metros quadrados. No centro, acima dos quatro degraus de cimento, está o caixão. As paredes são claras e as únicas cores pertencem às flores depositadas: brancas, amarelas e vermelhas. Nas escadas, há uma foto emoldurada, em preto e branco, do coronel falecido. Do lado esquerdo, os militares que trabalharam com ele. À direita, os familiares, vestidos de preto. As mais velhas, com capulanas pretas amarradas na cabeça. No alto das escadas, bem no fundo, há velhos que entoam canções no dialeto local. Músicas tristes, ritmadas, envolventes.

Entro, espremida , e vejo uma tia de Eva apoiando nos braços uma senhora bem velha. Ela tem lágrimas nos olhos e apenas pisca quando me vê. À frente estão Eva e seus irmãos, de braços dados ou se apoiando mutuamente. Subo as escadas. Do alto, vemos o caixão aberto, mas coberto por uma pequena toalha de renda. Descemos em fila indiana, até o lado de fora do velório.

Saio com lágrimas por todo o rosto, tremendo, com a sensação de que a cerimônia é forte demais. Os cantos são profundos, tristes. A multidão chega a centenas de pessoas.

Como manda a tradição

Em África, a tradição tem presença muito forte, embora não faça parte do cotidiano dos jovens. Assim que tiveram a notícia, os mais próximos se juntaram na casa do falecido. E assim devem ficar durante 15 dias. São feitas reuniões de família para estipular quando os parentes mais distantes estarão presentes e só com essa confirmação o enterro é marcado. Até lá, todos permanecem na mesma casa.

Apesar da tristeza, a morte deve significar união entre os familiares. Mas também significa ter muitos gastos. Como o pai de Eva era da banda militar, os custos do funeral serão pagos pelo Estado. As outras despesas, no entanto, ficam com os filhos: todos os que vêm de longe serão alimentados por eles nas duas semanas que se seguem à morte, data em que podem retornar às suas casas.

Durante esse tempo, as reuniões familiares são praticamente diárias. Uma delas foi para decidir onde seria feito o enterro. Os filhos, que vivem em Maputo, queriam o pai enterrado nessa cidade. Os irmãos mais velhos (as titias, como diz Eva), exigiam que o corpo fosse levado a Manjacaze, na província de Gaza, onde ele nasceu. Diziam que os mais novos não entendem nada e que se o corpo fosse enterrado na capital, os jovens não teriam mais apoio dos velhos. Venceu a tradição.

Também mandam os costumes que, quando um parente morre, não se pode namorar. O sexo fica proibido até o final das cerimônias fúnebres. Eva me pergunta se é assim também no Brasil.

Logo após a notícia da morte, os familiares se reúnem na casa do falecido. Todos os mais velhos ficam na sala. Os homens sentam-se do lado esquerdo, em cadeiras. As mulheres, todas com capulanas amarradas, ficam do lado direito e se aglomeram no chão, deitadas em esteiras de palha. Elas expressam tristeza, pois assim deve ser, me dizem. Os mais jovens ficam no quarto: homens e mulheres no mesmo espaço.

Mesmo com tanta tradição presente, há situações que poderiam se dar em qualquer parte do mundo, como as brigas por bens. Os irmãos do falecido discutem com os filhos para saber quem ficará com a herança do velho militar. Em cada uma dessas brigas, os parentes votam o que deve ser feito.

Para decidir a roupa do enterro, também foi feita uma reunião. Dessa também participaram os militares. E a família não tinha poder. Ele deve ser enterrado com a roupa de trabalho. O chapéu do exército, entretanto, ficará para o filho mais velho.

Como os familiares devem ficar reunidos desde a morte até que se encerrem as cerimônias, é preciso que tenham folga no trabalho. E têm. Dependendo da empresa, os parentes de primeiro grau recebem até duas semanas. Para os mais distantes, apenas uma semana. Eva, mesmo sendo filha, ganhou uma semana só.

Por feitiço

Quando tinha 12 anos, Eva perdeu a mãe. Após a morte dela, seu pai teve outra mulher, com quem também teve filhos. Eles se separaram, mas essa mulher foi hoje ao velório na casa do falecido. Eva e sua irmã, no entanto, a expulsaram de lá. “É uma feiticeira”, grita.

Pergunto se ela tem algum poder e Eva afirma que sim. Desejava a morte do ex-marido e só foi lá para confirmar. Não sofria de verdade.

Em Moçambique há feiticeiros, que têm poder para o bem e para o mal. “Meu Deus, estou enfeitiçado!”, gritou a personagem de Mia Couto em Terra Sonâmbula. “A cabra me deitou feitiço... a puta estava com os sangues, raios a partam... grande puta: estavas menstruada!”. O escritor ainda explica: “vinha à mente a voz da crença, condenando aquele que ama uma mulher em estado de impureza. Também o português punha crédito em tais africanas maldições: nele os sangues haveriam de escorrer, transbordantes.” Em casos como esse, os enfeitiçados têm uma única forma de se livrarem da maldição, que é fazer um corte no pescoço. O problema surge quando pensamos em uma sociedade onde mais de 1,5 milhão de pessoas estão infectadas pelo HIV. As facas estarão desinfetadas?

A crença em feitiços está enraizada na cultura e tenta explicar a sociedade. Tuberculose e hérnia, por exemplo, são doenças de quem dormiu com viúva que ainda está no período de luto. E nenhum marido desconfiaria de traição se a mulher ostentar um osso de cabrito dentro de casa, mesmo que ela tenha engravidado no ano em que ele se encontrava fora da cidade. Esse osso permite que uma pessoa esteja em dois lugares ao mesmo tempo. Atualmente, muitos acreditam que esses feitiços ocorrem e são totalmente verdadeiros. Muitos outros acreditam que são apenas mitos, lendas que enriquecem a cultura moçambicana.

domingo, agosto 19, 2007

Maldição na machamba

Era uma vez uma machamba (plantação). Uma comunidade de macaquinhos se alimentava do que era produzido em suas terras. Em um dia feio de verão, sem aviso, ratos invadiram a plantação. Foi uma peste violenta. Para controlar a praga, os macacos decidiram comprar veneno e jogaram a isca em todo o terreno. Assim, viveriam felizes para sempre.

Em poucos dias todos os ratos morreram, mas algo inesperado ocorreu. Os macacos também estavam doentes. Todos que se alimentavam morriam como as pestes. Preocupados, eles se juntaram novamente para esclarecer os acontecimentos: os que comeram as plantas da machamba, depois de jogado o veneno contra a praga, morreram envenenados.

Agora, restavam apenas quatro macacos na comunidade. Um deles decidiu que não comeria mais, para não se envenenar. Ele colocou, para sempre, suas mãos tampando a boca. O segundo decidiu que não queria ver mais mortes em sua comunidade e colocou as mãos nos olhos, para nunca enxergar nada. O terceiro resolveu tampar os ouvidos, pois assim não ouviria mais histórias tristes. O último, nunca mais brincaria. As mortes dos outros macacos lhe tiraram a alegria de viver.

Lilo e os macaquinhos

Caminho em direção à feira de artesanato de Nampula, cidade do norte de Moçambique. As primeiras barracas vendem panos para limpar o chão. À frente, vendedores amontoam pares de calçados usados, colocados uns em cima dos outros, com pares afastados no meio de outros tantos.

Entro no meio das barracas. A feira abrange quarteirões inteiros, se enredando pelo meio de um campo, pelas calçadas e pela rua. Em barracas mais afastadas há peças em madeira, em palha e em marfim. Em Moçambique, o importante é saber pechinchar. No geral, a mercadoria vale – ou é vendida – pela metade do preço ofertado inicialmente. Há também roupas, bijuterias, pequenos gorros tricotados a mão, tapetes e vassouras de palha.

Enquanto me perco nos diversos corredores, um rapazinho me segue. Ele segura quatro macaquinhos de madeira nas mãos e insiste para que eu compre sua mercadoria. Repito que não quero, que não tenho dinheiro, que já comprei o que queria. Ele me pede, então, que eu apenas escute a história da comunidade desses macaquinhos. Lilo me convenceu e comprei os quatro. Por todo o país comprovei que sua história é verdadeira.

Problemas nacionais

Moçambique é assolado por pragas e calamidades naturais mais de uma vez por ano. Em 1994 e 1996, gafanhotos vermelhos invadiram as províncias de Manica, Tete, Sofala, Zambézia e Niassa. As culturas foram destruídas e milhões de pessoas tiveram a fome acentuada nesses períodos. Pragas causadas por ratos também são um problema de saúde pública no país.

As cheias são praticamente anuais. As terras cultivadas inundam, há danos nas estradas, sistemas de água e saneamento são destruídos. Em fevereiro de 2000, ciclones se somaram às cheias, nas cidades de Maputo e Matola. Mais de 650 mil pessoas foram afetadas, milhares de hectares cultivados foram perdidos e grande quantidade de gado morreu afogada.

Neste ano, as calamidades naturais também não ficaram longe dos moçambicanos. Houve ciclones no sul, centro e norte do país. Além de cheias no centro. As pessoas perderam casas, machambas e árvores (que simbolizam os seus antepassados). Perderam parentes e amigos. E as cheias vão continuar, as ventanias também, trazendo mais calamidades no futuro. “Mas os moçambicanos devem ter força de superar as adversidades, dado que venceram inimigos mais fortes no passado. O povo já mostrou que é heróico, corajoso e sábio, características indispensáveis para ultrapassar a dor que todos sentimos neste momento”, declara Armando Guebuza, presidente do país e da Frelimo (partido no poder desde a independência).

Infelizmente, apenas palavras de esperança não vão resolver os problemas dos próximos anos. A construção de barragens, por exemplo, é um sério projeto de infra-estrutura que devia ser pensado com urgência. Assim como todos os outros projetos de infra-estrutura em andamento há anos, sem sair do papel, comuns em países como os nossos.

sexta-feira, julho 27, 2007

Eva

A porta do banheiro fica ao lado da porta de ferro preta do apartamento. É de madeira envelhecida, pintada de branco, mas com camadas descoloridas. Não possui chave nem trinco. Entro e a lâmpada está queimada. No fundo, um degrau de cimento foi construído com um buraco no meio, onde devemos fazer todas as necessidades e também tomar banho. A água usada deve cair no buraco e, provavelmente, poderá ser vista na calçada depois. Eva me mostra como devo fazer para me banhar “de canequinha”. Coloco a água que ela esquentou por cerca de 30 minutos em um pote pequeno, de plástico. Molho meu corpo e me ensabôo. Ao sair da casa de banho, enrolada em uma toalha, há pessoas no corredor que desviam seus olhares para mim. Passo rápido e entro no dormitório.

Hoje me mudei para a casa de Eva, uma jovem moçambicana da capital. Ficarei na casa dela durante minha estadia em Maputo. À entrada do prédio não há porteiro, nem grades, nem portas. É apenas uma escada, que surge ao final de um corredor. O dormitório fica no terraço, e a impressão é de que subimos quatro andares. Além da falta de limpeza, não há luz nas escadas.

Entro no dormitório. O primeiro cômodo é a sala, onde há um sofá confortável de cinco lugares, que tem uma cor entre o vinho e o marrom. No canto esquerdo, ficam a televisão, um aparelho de som e o ventilador. As paredes são azuis, com remendos na textura, e a única janela é um pedaço da parede sem cimento, com grades e uma tela. O teto é de telhas de zinco.

Atrás dos sofás, de frente para a TV, estão a geladeira, o fogão elétrico e um grande barril azul – onde é depositada a água que servirá para nossos banhos, para lavar a louça e para fazer comida. A porta entre os sofás e a geladeira é a entrada do quarto, onde há duas camas grandes, muitos sapatos enfileirados, cremes e bijuterias.

A receptividade de Eva é algo incomum. Mas não para Moçambique, onde todos procuram me agradar. Timidamente, se desculpando, ela me conta do problema de seu apartamento: o banheiro fica do lado de fora e é comunitário. E, na verdade, não é um banheiro. “É assim”, sussurra, abrindo a porta.

Promessa para cinco anos

Assim como Eva, que não tem banheiro nem torneiras em sua casa, sobrevive metade da população. Pouco mais de 40% dos moçambicanos têm água em sua residência e, no campo, os índices chegam a ser nulos. Quando se trata de saneamento, o acesso também é precário: passou de 6% em 1980 para 30% em 1993 e 40% na última década.

O governo prometeu melhorar a situação nos próximos cinco anos, mas as mudanças são lentas. Teve início em abril deste ano um projeto de ampliação da rede de abastecimento nas cidades de Maputo, Matola e vila de Boane – no sul do país. Os gastos serão da ordem de 95 milhões de euros, vindos do Banco Europeu de Investimentos, da União Européia, do Governo da Holanda e da Agência Francesa de Desenvolvimento, com colaboração do próprio governo de Moçambique.

Embora saiba como amarrar o lenço na cabeça, Eva não segue a tradição nas roupas. Tem capulanas, mas elas só saem do armário em situações especiais. Quando fala de sua casa diz que pretende, em breve, procurar outra com melhores condições sanitárias.

A capacidade de produção e de transporte deve ser ampliada para o dobro do que existe hoje. Prevê-se que a disponibilidade de água seja de 24 horas por dia, chegando a um milhão e meio de pessoas nessa região. Embora as perspectivas sejam animadoras, ampliando o acesso, boa parte da população ficará de fora da modernização, que chegará a apenas 73% das pessoas.

Isso se falarmos da capital. Em outras províncias e mesmo no interior de Maputo, não há projetos como esse em andamento. Enquanto isso, a inadequada gestão e utilização de água pela população, o modo como se lida com os resíduos e os hábitos de higiene pessoal contribuem para a proliferação de focos de desenvolvimento de doenças como diarréias, disenteria e cólera. Atualmente, a diarréia é responsável por 13% das mortes de crianças com menos de cinco anos no país.

As cheias freqüentes também contribuem para essa situação caótica. Destruíram ou fizeram com que os sistemas de esgoto e de água deixassem de funcionar. Isso leva, periodicamente, a uma cobertura mínima de água tratada nas áreas afetadas e à poluição das fontes de água expostas. Quem sofre são sempre os mais pobres.

quarta-feira, julho 25, 2007

Cheiros mais fortes


* este foi um dos textos que mais gostei de escrever. Ele é extremamente sensorial e por isso acho que é uma das cenas que melhor consegui descrever e que melhor descrevem o que vivi em Moçambique. A foto é a capa do meu trabalho.


São quatro horas da manhã e o despertador acaba de tocar. O chapa (uma pequena lotação bastante destruída) é pontual e está passando na porta da pensão. Entro rápido e vou para o fundo. Os assentos são desconfortáveis, feitos de pequenos filetes de madeira cobertos por plásticos sujos e grossos, na cor vermelha.

Esse chapa nos levará ao ponto terminal do lado continental da Ilha de Moçambique, onde pegarei outro veículo para Nampula. O motorista dá voltas pela Ilha para pegar passageiros e passa mais uma vez em frente à pensão onde me hospedei. Chega à ponte para ir ao continente, mas pára alguns instantes, dá meia volta e começa a circular novamente pela ilha. Olho para as pessoas e sorrio; não há o que fazer.

Ao meu lado sentou-se uma senhora gorda com roupas sujas. A impressão é de são as mesmas roupas utilizadas durante toda a semana. Seu cheiro é azedo, como o dos ônibus de São Paulo em dias chuvosos de verão. Os passageiros mantêm os vidros fechados e, aos poucos, o chapa começa a ganhar um aroma mais forte: como uma mistura de peixe com um tempero agridoce. Meu estômago está se revirando e nenhuma tentativa de escapar desse cheiro é suficiente. Olho para cima, para ver se acima de nossas cabeças o ar circula mais. Abro um pequeno pedaço do vidro à frente, mas outro passageiro logo o fecha. Faço esforço para cochilar e as coisas melhoram um pouco.

Atrás de nossos assentos o sol nasce. O chapa pára em frente à ponte e, agora, atravessa. Mal acredito. Mesmo em cima da ponte, no entanto, continua indo e voltando para pegar pessoas e encher o carro, que já está lotado. Chegamos ao ponto final às 5h30 e faço a baldeação para o chapa que nos levará até Nampula. Nossas malas são colocadas no capô, amarradas por cordas. A espera para a partida é longa e, nessas situações, todo cuidado é pouco. Há batedores de carteira, ladrões de malas e os que se aproveitam da lotação para furtar bens dos passageiros distraídos. Em alguns terminais de chapas foram, inclusive, instalados postos policiais.

Sento no último banco, o único com lugares vagos. No espaço em que deveriam ficar quatro pessoas, se equilibram cinco. Ao meu lado, uma mulher muito bonita carrega um bebê que chora. A sensação não é, nem com muito esforço, melhor do que a do carro anterior. Ao contrário, o cheiro de peixe parece mais intenso agora. A viagem é longa, o cheiro é insuportável, cada vez mais pessoas entram no chapa e se empoleiram. Conto mais de cinqüenta passageiros.

Mercados de estrada

Pela estrada, paramos em todas as pequenas cidades que ficam no caminho entre a Ilha de Moçambique e Nampula – capital da província. Em cada uma das paradas, enquanto homens e mulheres descem do veículo para fazer xixi no mato, as janelas do chapa são invadidas: por cheiros de frutas e por vendedores de guloseimas, de legumes, de bebidas alcoólicas, de galinhas vivas, de carregadores de celular, de sapatos, de relógios, de capulanas, de bonés, de perfumes falsificados, de todo tipo de produto que se possa imaginar. Sempre há vendedores de limão e de ovos. Inicialmente, me pergunto para quê alguém na estrada compraria um ovo e como esse ovo chegaria inteiro ao destino. Mas logo percebo que aqueles ovos são cozidos. O passageiro compra, o vendedor quebra a casca na parte de baixo e coloca ali o tempero que o consumidor desejar: uma pitada de sal ou de piri-piri, a pimenta de Moçambique. Logo, aos passageiros se juntam também sacos e mais sacos de todos os tipos de frutas e de legumes, algumas cascas de ovos e até galinhas vivas.

Do lado de fora, assistimos a um fenômeno social. Para fugir do desemprego e tentar sobreviver, cada vez mais pessoas se aglomeram pelas estradas do país, vendendo todo tipo de gêneros. Os vendedores desafiam veículos em movimento e chegam a atravessar a rodovia correndo com seus produtos na cabeça, para convencer o cliente que está do outro lado a comprar. E desafiam também outros vendedores: cada um tenta vender a um único passageiro todos os produtos que possui, de tal maneira que este fica tão atrapalhado que muitas vezes se vê comprando algo desnecessário.

São jovens de todas as idades, crianças, velhos, homens e mulheres. Nos mercados de estrada, não há distinção entre os vendedores. A mesma insistência e correria faz parte deles. O que muda de uma parada para a outra são os cheiros: de limão, de mandioca, de goiaba, de banana, de castanha, de pão, de ovo, de peixe frito, de carne assada. Todos esses guerreiam com o cheiro do próprio chapa – com mercadorias dos mais diversos gêneros e lotado de perfumes naturais.

De volta


Há tempos não relia os textos publicados neste blog. Coincidentemente, a previsão para 2007 não estava errada. Com comilanças pelo mundo, engordei 6 quilos - que quase já perdi. E o melhor de tudo: dei início à minha trajetória culinária com um cuscuz muitíssimo bem feito. É verdade que depois dessa experiência não tentei cozinhar mais nada... mas pra que mexer no que já está bom?

Minhas vontades de escrever são mais do que inconstantes. Por isso esse vai e volta de tantas vezes em um único blog. Hoje, surgiu a vontade lendo o blog de um jornalista fotográfico português, que foi para o Afeganistão fazer uma reportagem sobre as tropas portuguesas no país (!). Apesar da origem da viagem, o blog é interessante por trazer algumas histórias do que ele tem vivido por lá. Para quem se interessar, o link é: http://visao.clix.pt/default.asp?CpContentId=333811.

E a vontade, claro, não é desinteressada. Vou colocar aqui, nos próximos dias, alguns dos textos que fiz em Moçambique (coincidentemente, também, o blog se chama "Diários de Cabul" e o meu trabalho se chama "Diários de Moçambique" - puta falta de criatividade, pelo visto). Enfim, meus textos africanos são bastante parecidos com o que é possível ver no blog português. Se a tecnologia ajudar e não travar meu computador de novo, coloco inclusive fotos com os relatos!

quarta-feira, janeiro 17, 2007

Cuidado com os piratas virtuais


Alertas sobre pendências financeiras, versões atualizadas gratuitas de antivírus, dicas de como ganhar dinheiro fácil, cartões virtuais de desconhecidos. E-mails com esse tipo de informação chegam aos montes em todas as caixas de mensagens e escondem perigos para a segurança do internauta. Proteja-se!

Em 2005, as tentativas de fraude pela internet cresceram 579% com relação a 2004, de acordo com estatísticas do Centro de Estudos, Resposta e Tratamento de Incidentes de Segurança no Brasil (CERT.Br), mantido pelo Comitê Gestor da Internet (CGI). Nem todas essas notificações de fraude se referem a incidentes que realmente ocorreram, mas é importante saber como se prevenir das tentativas de golpe.

“Normalmente o ataque por e-mail tenta levar a pessoa a acreditar em algum fato urgente e a seguir um link ou instalar um código malicioso em seu computador, em geral chamado de cavalo de tróia. Quando o usuário instala o programa, os atacantes passam a ter controle total sobre a máquina, podendo interceptar todas as ações do usuário”, alerta Cristine Hoepers, analista de segurança do CERT.br.

Com o aumento do número de usuários domésticos conectados à internet – 12,4% a mais em 2005 do que em 2004, segundo o Ibope//NetRatings – o foco dos atacantes tem se direcionado para as máquinas desses usuários. Computadores domésticos são utilizados para realizar inúmeras tarefas, como transações financeiras (bancárias ou compras pela internet), armazenamento de dados, comunicação por e-mail e mensagens instantâneas. Por esse motivo é importante se preocupar com a segurança do computador, para não ter senhas e números de cartão de crédito furtados e utilizados por outra pessoa, para que o computador não se torne um emissor de spam nem um propagador de vírus, e ainda para que nenhuma atividade ilícita seja realizada a partir da conexão do usuário à internet.

“Para se proteger de fraudes online é necessário que as pessoas encarem a internet com o mesmo cuidado com que encaram qualquer transação financeira fora do mundo virtual. É necessário que além de ações preventivas do ponto de vista tecnológico, o usuário também mude seu comportamento. Para isso, deve utilizar senhas fortes e diferentes para cada serviço, jamais executar arquivos recebidos sem ter certeza de sua origem, não fornecer dados pessoais e senhas por e-mail, não acessar sites ou links recebidos por e-mail e sobre os quais não saiba a procedência”, enfatiza Cristine.

Quando a tecnologia não ajuda muito

As crianças são um alvo muito mais suscetível a sofrer golpes pela internet. Como alguns cuidados – direcionados aos adultos – não são de fácil apreensão para crianças de qualquer idade, há uma série de recomendações para protegê-las de fraudes.

“Bloquear a entrada das crianças em sites não confiáveis não resolve o problema, porque para a criança burlar um mecanismo de segurança é fácil. Hoje em dia ela acaba sabendo mais de computador que os adultos. Dessa forma, só a informação transmitida pelos pais pode ajudar de verdade [a evitar ataques virtuais]”, afirma André Carraretto, engenheiro de sistemas da Symantec Brasil.

Quando tratamos de ataques que as crianças podem sofrer em seus acessos à internet, chegamos a um ponto em que a tecnologia não ajuda 100%. O que mais vale nessa hora é a educação.

De acordo com Ana Cláudia Alves, gerente de produtos de segurança da Microsoft, a principal forma de evitar esse tipo de ataque é aconselhar a criança a não participar de chats com desconhecidos, nem passar informações sobre ela ou sobre os pais a ninguém com quem converse pela internet. Os pais também devem orientar os filhos a avisá-los em caso de questionamentos ou formulários que exijam dados pessoais. Além disso, é recomendável estimular as crianças a navegar em sites educativos e participar de brincadeiras e desafios em domínios que sejam confiáveis.

Seu nome no SERASA

Os golpes que chegam por e-mail, em geral, são bem elaborados, mas basta um pouco de atenção para verificar uma série de incoerências. Em geral, as mensagens são bem parecidas com as enviadas pelas instituições verdadeiras, mas muitas possuem imagens quebradas, textos fora de formatação, erros de português – raramente encontrados em e-mails de empresas que investem tanto em publicidade para atrair clientes.

Títulos de mensagens para deixar o internauta curioso ou assustado, como “Seu nome no SERASA”, ou que apelam para caridade ou para possibilidades de obter vantagem financeira são bastante comuns. Confira na tabela acima os tipos mais comuns de fraudes por e-mail e veja abaixo como se prevenir de ataques virtuais.

“Ao identificar um spam como sendo um caso de fraude deve-se guardar o conteúdo completo da mensagem recebida. Só assim será possível identificar o site utilizado para hospedar o esquema fraudulento”, esclarece Cristine. Se o usuário já foi lesado de alguma forma por um ataque virtual, deve entrar em contato com a operadora de cartão de crédito ou com o banco cuja senha tenha sido fraudada, além de registrar um boletim de ocorrência (BO). Caso o spam com a tentativa de fraude seja relacionado ao nome de alguma empresa, como Microsoft ou Symantec, o usuário também deve comunicar a respectiva empresa sobre o ataque.

Proteja-se dos ataques fraudulentos

  • procure sempre digitar em seu browser (no espaço superior da tela de internet) o endereço desejado. Não utilize links recebidos por e-mail

  • certifique-se de que o endereço apresentado em seu browser corresponde ao site que você realmente quer acessar, antes de realizar qualquer ação

  • certifique-se de que o site faz uso de conexão segura: verifique se em páginas em que você digita dados pessoais o endereço se inicia com https:// e não apenas http:// e se há um cadeado na parte inferior direita da página

  • entre em contato com a instituição se receber e-mails urgentes que peçam suas informações bancárias ou de cartão de crédito, para se certificar de que a própria instituição lhe enviou o e-mail

  • fique atento a casos de novas fraudes por e-mail divulgadas pela mídia

  • não utilize computadores de terceiros para realizar transações financeiras ou compras pela internet

  • desligue sua webcam (caso você possua alguma), ao acessar um site de comércio eletrônico ou Internet Banking

  • configure seu browser para bloquear pop-ups e permiti-los apenas para sites conhecidos e confiáveis: pop-ups também podem ser programas executáveis fraudulentos

  • configure seu programa leitor de e-mails para não abrir arquivos ou executar programas automaticamente

  • cheque se o endereço digitado permanece inalterado no momento em que o conteúdo do site é apresentado no browser; existem algumas situações em que o acesso a um site pode ser redirecionado para uma página falsificada

  • os fraudadores utilizam técnicas para ofuscar o real link para o arquivo malicioso; ao passar o cursor do mouse sobre o link, é possível ver o real endereço do arquivo malicioso na barra inferior do programa leitor de e-mails

  • fique atento aos arquivos com extensões ".exe", ".zip" e ".scr", pois estas são as mais utilizadas; outras extensões freqüentemente usadas por fraudadores são ".com", ".rar" e ".dll"

  • no caso de mensagem recebida por e-mail, o remetente nunca deve ser utilizado como parâmetro para atestar a veracidade de uma mensagem, pois pode ser facilmente forjado pelos fraudadores

  • na pasta "Painel de Controle" de seu computador, você tem acesso a um item chamado "Opções da Internet", onde pode desabilitar alguns tipos de arquivos em sua máquina, ou, ainda, escolher uma configuração de "Segurança Alta", diminuindo as chances de arquivos fraudulentos se alojarem em seu computador

    Para saber mais

    Centro de Estudos, Resposta e Tratamento de Incidentes de Segurança no Brasil: http://www.cert.br/

    Site antispam: http://www.antispam.br/

    Dicas de segurança da Microsoft: http://www.microsoft.com/brasil/security/

    Programas antivírus gratuitos para download: http://pcworld.com.br/dicas/2006/01/31/idgnoticia.2006-01-31.4272923692/IDGNoticia_view