Mais de metade das crianças opina sobre o consumo familiar, escolhendo produtos e até marcas para uso próprio e da casa. Elas sabem como persuadir os pais e a publicidade exerce forte influência na hora da decisão
As crianças brasileiras passam, em média, 40 horas por semana em frente à televisão. Se considerarmos que elas nunca vão assistir a uma superalface mostrando seus poderes ou a um tomate que prometa energia para ser forte como um leão, a constatação é preocupante. Os personagens publicitários mais irresistíveis são, no geral, os que apresentam guloseimas, refrigerantes e brinquedos caros, convencendo crianças e até a família inteira a consumir.
Elas escolhem por critérios subjetivos, como gosto, emoção e imagem da marca. Cerca de 80% das mães latino-americanas, por exemplo, permitem que seus filhos escolham bolachas e chocolates preferidos; 70% delas também aceitam a decisão na compra de iogurtes e 61% ampliam a permissão para bebidas e sucos. Os dados são da pesquisa mais recente sobre consumo infantil da TNS (Taylor Nelson Sofres, instituto britânico de pesquisa vice-líder no ranking mundial de empresas de pesquisa de mercado), que conversou com famílias da Argentina, Brasil, Chile, Guatemala e México. Se elas podem decidir, vão querer o pacote de bolachas com mais nutrientes e menos gordura e sódio ou aquele em cuja publicidade ocorrem as mais incríveis armações quando se come a bolacha? Os índices alarmantes de obesidade na população infantil de todo o mundo respondem facilmente.
“As crianças estão muito expostas a estímulos e, principalmente as de classes mais altas, têm consciência de seu poder frente aos pais. Logo no primeiro contato com o mundo do consumo, que será com os gêneros alimentícios, elas vão se manifestar”, afirma Ivani Rossi, diretora de planejamento da TNS. Hoje as marcas se comunicam diretamente com a criança e são bem mais agressivas do que anos atrás. Por isso, é importante ensinar sobre a importância do consumo consciente e sobre o papel da publicidade. É assim que Eliana procura conscientizar os dois filhos do que pode ou não entrar no carrinho do supermercado. “Eles batem o olho na prateleira e sabem o que querem. São muito guiados por comerciais, então preciso explicar e convencê-los de que nem todos os alimentos que viram na TV ou que trazem brindes são bons para a saúde”.
A “contra-educação”, no entanto, é muito forte. Quase metade das publicidades veiculadas nas duas maiores emissoras de TV do país, durante o horário infantil, é de guloseimas. Do restante, cerca de 20% é de bebidas não-lácteas, como refrigerantes. Todas tentam agregar valores emocionais ao produto, usando personagens infantis, apresentadores de TV famosos, cores fortes, objetos para colecionar e brindes, e conseguem chamar atenção. “A publicidade influencia porque diz às crianças que serão mais felizes se tiverem um produto ou usarem um serviço. Cria vontades e desejos. Funciona como com os adultos, com a diferença de que os menores não compreendem a complexidade das relações de consumo, não sabem que não precisam ter produtos ou serviços para serem felizes e integrados ao grupo. Acreditam no que ouvem”, afirma Isabella Henriques, coordenadora do Projeto Criança e Consumo, do Instituto Alana. Pesquisas internacionais apontam que 30 segundos são suficientes para uma marca influenciar. Com horas e horas de comerciais em meio aos programas infantis, é fácil imaginar a destruição causada.
Consumo x consumismo
A criança se torna consumidora no momento em que acompanha os pais pela primeira vez nas compras. A partir daí, “sente-se parte integrante da família quando consegue influenciar. Pode não ter noção de marca, mas escolhe produtos para se inserir e destacar”, comenta João Osvaldo Matta, consultor sobre marcas, produtos e serviços infantis e professor de marketing da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing, de São Paulo).
Os adultos funcionam como modelos e influenciam comportamentos consumistas. Mas, sem dúvida, a comunicação do mercado – incluindo embalagens, merchandising, produtos nas prateleiras mais baixas do supermercado e a própria publicidade – têm significativa parcela de influência na formação de hábitos não saudáveis.
As conseqüências são várias e podem ser desastrosas. Estimula-se não apenas o consumo, mas o exagero, o consumismo. “Sob o ponto de vista ambiental, se o planeta continuar no ritmo de hoje, serão necessárias mais quatro Terras para que os recursos sejam suficientes. Até essas quatro serem consumidas e serem necessárias mais quatro”, afirma Isabella.
Na área médica e de saúde, a insustentabilidade também está a caminho. Dados da Obesity Reviews, veiculados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) , relacionam diretamente divulgação de alimentos a obesidade infantil. No Brasil, 30% das crianças estão com sobrepeso e, dessas, 15% são obesas. Em contrapartida, mais de 80% das publicidades de alimentos infantis são de produtos calóricos e pobres em nutrientes. Confira ao longo da reportagem exemplos de publicidade que não fazem nada bem para a saúde das crianças. A seleção foi feita por um grupo de pesquisa da Universidade Federal de São Paulo – Escola Paulista de Medicina (Unifesp), coordenado por José Augusto Taddei e Tatiana Elias Pontes.
O caráter de exclusão de todo tipo de publicidade, deixando de fora os que não podem comprar determinado produto ou serviço, pode ainda ser causa de criminalidade. “Prometer felicidade com o consumo e criar expectativas não é ético. Exclui quem não consome, porque a pessoa não vai alcançar a felicidade prometida. Em última análise, pode levar à marginalização e à violência”, afirma Sérgio Miletto, produtor cultural e coordenador da campanha “Quem financia a baixaria é contra a cidadania”.
Para Noemi Friske Momberger, advogada especialista em publicidade infantil, os comerciais são os principais culpados pelo consumismo. “Não basta trocar de canal: é preciso proibir a publicidade e melhorar a qualidade dos programas. Só assim será possível formar cidadãos que não se voltem para o consumo desenfreado”.
Quem precisa da publicidade infantil?
O artigo 37 do Código de Defesa do Consumidor (CDC) deixa claro que “é proibida toda publicidade enganosa ou abusiva que (...) se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança”. Antes dos 10 anos, poucas conseguem entender que a publicidade não faz parte do programa televisivo e tem como objetivo convencer o telespectador a consumir. Dessa forma, comerciais destinados a esse público são naturalmente abusivos e deveriam ser proibidos de fato.
Mas a discussão é intensa: de um lado, militantes dos direitos infantis afirmam que é imperativo proibir qualquer anúncio para menores de 10 ou 12 anos; de outro, há quem acredite que proibir é censura. Entre eles, ainda, há os que defendem a regulamentação como a melhor escolha.
Para Noemi, as autoridades não se deram conta das armas que têm em mãos. “O CDC e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) proíbem publicidade infantil expressamente. Não é possível que agora os empresários queiram considerar censura respeitar o que está previsto na legislação”. A argumentação de censura acaba aparecendo como uma nuvem de fumaça que o mercado publicitário tenta jogar na discussão. A publicidade não é manifestação de pensamento: é atividade econômica e deve ser regulada.
Já Osvaldo Matta (ESPM) acredita que “proibir totalmente é preguiça de refletir. Sou a favor da restrição. As mudanças vêm caminhando lentamente, devíamos acelerar o processo e tornar a discussão mais madura, pois precisamos de um equilíbrio”. Um ponto interessante a ser levantado, de acordo com o consultor é: de que vale proibir a publicidade se todos esses produtos continuarão nas prateleiras, sendo colocados nas alturas ideais para chamar a atenção e sofrendo recalls por irregularidades de fabricação?
O ideal seria o Poder Executivo atuar mais na área. No Legislativo, havia até um projeto de lei (nº 5921/01), do deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR), que pretendiaguiar as ações do governo e tinha por objetivo proibir toda a publicidade que promovesse a venda de produtos infantis.
A própria Anvisa, ao final de 2006, realizou uma consulta pública a respeito de uma proposta de regulamentação da publicidade de alimentos, mas uma resolução final ainda não veio à luz. A regulamentação visaria especificamente à publicidade de alimentos com quantidades elevadas de açúcar, sal, gorduras trans e gorduras saturadas. Enquanto isso, apresentadoras de programas infantis, empresários e emissoras de TV atingem lucros exorbitantes. Só em 2002, por exemplo, os cerca de trezentos itens da marca Xuxa no mercado renderam à apresentadora a soma de R$ 30 milhões. “Nossas apresentadoras exploram a credulidade, a ingenuidade, o sentimento de lealdade que as crianças têm por elas. Será que seu filho precisa de um caderno com a foto da Xuxa ou da Eliana? Quem ganha com isso?”, questiona Noemi.
Como funciona lá fora
No Reino Unido, um produto que custe mais de 15% do salário mínimo (menos de R$ 60 no Brasil) é considerado muito caro e não pode ser divulgado para crianças. Artistas, marionetes, personagens de desenho animado e apresentadores de TV são proibidos de fazer comerciais para crianças e não pode haver merchandising no período de duas horas antes ou após programas infantis. A publicidade também não pode estimular que a criança coma perto do horário de dormir.
Já a Grécia proibiu a publicidade de brinquedos na televisão entre 7h e 22h; e Bélgica e Holanda proibiram publicidade durante a exibição de programas infantis. O Canadá limita o tempo em que as emissoras podem veicular publicidade por hora. E o Chile, por exemplo, tem regras para que a publicidade respeite a ingenuidade e credulidade dos pequenos e a inexperiência dos jovens.
Ao contrário, no nosso país, muitos programas infantis vivem à custa do merchandising, que nada mais é a publicidade de produtos diluída na programação normal, prática que torna ainda mais difícil o discernimento por parte da criança. Infelizmente, não há determinação no CDC que proíba essa prática. Há programas dedicados exclusivamente ao oferecimento de brindes às crianças que acertarem uma resposta ou ganharem uma brincadeira. É claro que o “brinde” não é oferecido sem antes os apresentadores ressaltaram as qualidades do brinquedo e fazerem publicidade da marca. Outro problema, como acontece constantemente, é o lançamento de linhas de produtos baseadas em personagens infantis. Em 2000, pouco antes da estréia da série do “Sítio do Pica-Pau Amarelo”, na Rede Globo, foram lançados cem itens que remetiam aos personagens do programa. Para muitos estudiosos, entretanto, nenhuma dessas jogadas de marketing seria necessária para manter as redes de televisão, já que o grosso de seu lucro vêm da publicidade para adultos e não da dirigida a outros públicos.
A discussão prossegue, mas o consumidor tem em mãos o poder para reclamar do que considerar abusivo. Qualquer irregularidade publicitária pode ser comunicada ao Ministério Público e ao Poder Judiciário, ou denunciada ao Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC), aos Procons e até ao Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária (Conar).
Publicidade para a criança que existe dentro de você
Não é só a publicidade infantil que pretende levar o consumidor a um mundo mágico e encantador. Diversos comerciais de produtos e serviços para adultos utilizam personagens e bonecos infantilizados para chamar a atenção. Alguns dos mais marcantes são os de bancos – que, convenhamos, não têm nada a oferecer ao público infantil. Os últimos comerciais do Unibanco, por exemplo, usam personagens. “Há publicidades ambíguas, que não são focadas na criança, mas na criança que há dentro de cada adulto. O ambiente bancário se transforma em algo mágico e tranqüilo e um pai acaba se influenciando por ver naquele ambiente algo ideal para seus filhos. Há um apelo forte, mas não direcionado diretamente às crianças”, explica Osvaldo Matta.
Trakinas Trakmix
Na publicidade televisiva, duas crianças apresentam um show de mágica para a família. O truque é o desaparecimento de um pacote inteiro de bolachas Trakinas Trakmix. É um bom exemplo do quanto a publicidade de alimentos pode ser prejudicial. O consumo de 100 gramas desse biscoito (pouco mais de três pacotes) fornece 60 gramas de carboidratos e 420 calorias, cerca de 25% da ingestão diária recomendada para crianças entre 7 e 10 anos, além de fornecer 96% da quantidade de sódio necessária. Outro ponto negativo é o preço do produto, que fica na faixa de R$ 27 por quilo. Além de tudo, a publicidade incentiva o consumo exagerado, já que as crianças acabam com um pacote do produto em poucos minutos.
Iogurte Chamito + Cereais coloridos
Um garoto, acompanhado de um gênio, arremessa uma bolinha colorida de cereal com um estilingue e ela percorre todo o mundo, caindo de volta na embalagem do Chamyto. Para comemorar, ele saboreia o iogurte. Nesse produto, encontramos 10% da recomendação diária de calorias e de carboidratos, e quase 20% do máximo que pode ser consumido de gorduras saturadas por uma criança em idade escolar. A própria Nestlé comercializa iogurtes mais saudáveis e mais baratos, pouco divulgados para o público infantil.
Refrigerante Schin com 250 ml
Personagens de um desenho infantil mergulham na embalagem do Mini Schin e todas as crianças aparecem bebendo o refrigerante durante a publicidade. Por ser um alimento que oferece apenas açúcares, não é nutritivo e não deveria ser divulgado (e nem comercializado) para crianças. O rótulo do produto, ainda por cima, baseia as porcentagens de nutrientes em uma dieta recomendada para adultos (isso ocorre com muitos alimentos, diga-se). Como tem por alvo o público infantil, deveria alterar o rótulo para a indicação com base em dieta de 1750 calorias diárias. É importante lembrar que o produto possui muitos corantes artificiais, que podem fazer mal à saúde pelo consumo a longo prazo.
Nescau Cereal
Quatro garotos conseguem fazer passes mirabolantes com bola enquanto comem o produto. Um deles consegue até chutar a bola em direção à parede com força para deformá-la. Apesar dessa “força” que o cereal parece dar às crianças, ele possui quase apenas carboidratos. Uma porção de 30 gramas chega a 7% da quantidade recomendada de carboidratos para crianças de 7 a 10 anos. O mais chocante, no entanto, é que um produto que se diz “cereal” não chega a ter nem 1 grama de fibra por porção – nutriente naturalmente encontrado nos cereais. O preço também é bem caro, sendo de aproximadamente R$ 24 por quilo.
Mc Lanche Feliz
A publicidade analisada foi da época em que o produto trazia como brinde personagens do filme “Carros”, da Disney-Pixar. Trazia cenas do filme e comentários de duas crianças pequenas sobre os “incríveis” brindes. Além de ser um produto nada nutritivo, a publicidade anula o papel dos pais na escolha da alimentação, com a idéia de que se eles dão brinquedos são mais legais que os pais, e ainda deixam a criança comer o que ela gosta – hambúrguer, refrigerante e batata frita.
Salgadinhos Yokitos
O Jakaroki (mascote da marca) surfa muito bem e consegue escapar de um tubarão. Depois da aventura, come o salgadinho na praia, descansando na sombra. Esta é outra publicidade que não deveria ser veiculada, pois o produto não traz benefícios para as crianças. Possui alta quantidade de gorduras e, diferentemente do que alardeia no rótulo, possui quantidade de fibras muito pequena. A publicidade ainda é enganosa por dizer que o alimento é enriquecido com 9 vitaminas e ferro, mas, de acordo com o estabelecido pela Anvisa, só poderia informar que é enriquecido com três vitaminas (conforme os valores mínimos necessários).
Sucrilhos Kellogg´s sabor brigadeiro
Enquanto uma criança consome o produto, diversos super-heróis se aproximam de sua casa, em clima de festa, e a convidam a participar da animação. Ao final da publicidade é indicado que a edição é limitada, deixando subentendido aos pais de que eles devem correr para comprar ou correm o risco de não experimentar. O principal problema do produto veiculado nesse comercial é ser rico em carboidratos, em sua maioria açúcares. Consumidos em excesso, os açúcares podem causar obesidade, doenças cardiovasculares e diabetes.
segunda-feira, outubro 01, 2007
Não embarque nessa aventura
quinta-feira, setembro 13, 2007
O Brasil passou do ponto
Está no Código de Defesa do Consumidor: “os órgãos públicos, por si ou suas empresas concessionárias (...) são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes e seguros”. Na prática, isso não é assegurado ao usuário do transporte coletivo, principalmente de ônibus.
Pense no caminho entre sua casa e o ponto de parada de ônibus mais próximo. Quanto tempo você gasta e como são as calçadas no percurso? O ponto de parada possui iluminação, bancos para se sentar, informações sobre veículos e horário em que passam? Os ônibus circulam em intervalos regulares? Geralmente há lugar para se sentar e é possível chegar no horário a compromissos? Provavelmente, as respostas não são animadoras para os mais de 55 milhões de brasileiros que usam diariamente o transporte coletivo.
Os municípios devem regulamentar e fiscalizar os serviços públicos de transporte, delegados a empresas que os prestam por concessão. Também cabe aos governos melhorar condições de vias públicas e de pontos de parada, o que aumentaria a qualidade do transporte, mas pouco é feito. Caminhamos na contramão: a demanda pelo transporte coletivo urbano diminuiu nos últimos anos, principalmente pela ineficiência do sistema e pelas altas tarifas cobradas, gerando círculos viciosos que só pioram a situação dos usuários desse tipo de transporte. “As tarifas são calculadas dividindo o orçamento do serviço pelo número de passageiros pagantes. A elevação de preço reduz o número de pagantes. No reajuste, a ‘conta’ é dividida por um número menor de usuários, pressionando os valores para cima mais uma vez”, esclarece Marcos Bicalho, superintendente da Associação Nacional de Transportes Urbanos (ANTP).
Essa situação seria amenizada com políticas públicas de incentivo ao uso do transporte coletivo. Um bom exemplo, pouco seguido, é o de Curitiba, onde há planejamento integrado de transporte e uso do solo, além de continuidade política das ações de governo, ou seja, uma boa iniciativa não é destruída com a mudança de prefeitos. Já em São Paulo, uma das cidades mais congestionadas e poluídas do país, cinco novos corredores de ônibus (com mais de 50 quilômetros de extensão) serão construídos até 2008. Infelizmente, isoladamente, essa medida tende a não trazer resultados efetivamente benéficos. Políticas que poderiam ser tomadas em conjunto para ter melhores resultados são: a redução do preço do óleo diesel, o subsídio ao transporte de idosos e o planejamento da rede de linhas.
É claro que os governos não têm recursos disponíveis para investir o necessário, mas o que possuem é usado de formas questionáveis. “Salvo raras exceções, as políticas públicas continuam a estimular o crescimento do transporte individual e a penalizar o coletivo, sem contar com a carência de investimentos em infra-estrutura urbana para o transporte coletivo”, critica Bicalho. Além disso, o governo pouco fiscaliza o trabalho das empresas concessionárias, que como grupos privados, se preocupam essencialmente com o lucro. Os direitos do consumidor – como acessibilidade, freqüência de atendimento, tempo de viagem, lotação, segurança, sistemas de informação, estado das vias e comportamento dos operadores – são relegados ao esquecimento.
O que pode ser feito?
Os interesses em jogo são poderosos e a população é o elo mais frágil. Restringir ou encarecer o uso do automóvel, por exemplo, coloca o governo em colisão com a indústria automobilística. Combater o transporte clandestino pode causar choque com setores do Legislativo que assumem práticas clientelistas. Exigir melhores serviços das concessionárias, apesar de ser função dos governos, também causa atritos difíceis de contornar.
Como os problemas são muitos, somente em longo prazo algo vai mudar. No entanto, é direito do consumidor receber um serviço adequado e dever das empresas prestá-lo da melhor forma, com fiscalização dos governos. Entre as muitas políticas que podem amenizar a situação, Érika Kneib, arquiteta urbanista especializada em transportes coletivos urbanos, cita uma em especial: “o processo licitatório do sistema é fundamental para que os direitos dos usuários sejam garantidos. Quando o processo é adequado, o poder público exerce seu papel de gestor e fiscalizador”.
Já para Paulo César Marques da Silva, professor do Programa de Pós-Graduação em Transportes da Universidade de Brasília (UnB), a solução seria inverter as prioridades entre automóvel e transporte coletivo. “Se entendermos o consumidor de transporte como todo cidadão, então seus direitos são os constitucionais de ir e vir. E estão acima do direito individual de usar espaços públicos para fins privados”.
O lucro das empresas também costuma ficar acima dos direitos dos usuários. Elas não fazem política social e só existem se tiverem resultados financeiros positivos. Nesse ponto, é fundamental o subsídio de governos, para que o acesso não fique limitado ao poder econômico de cada cidadão. As soluções do transporte passam, necessariamente, por políticas públicas, e não por questionamentos nas relações de mercado. “Cabe aos usuários fazer reclamações e exigências ao poder público e não às empresas, que são apenas prestadoras do serviço”, esclarece Érika.
Infelizmente, a população nem sempre é ouvida. A aposentada Alice Victor de Oliveira, hoje com 70 anos e associada do Idec desde 1994, já reclamou muito do transporte coletivo de seu bairro, na zona sul de São Paulo. A partir de mudanças feitas na região, muitos ônibus não conseguiam mais passar por uma das ruas do itinerário, estreita e não adaptada para o novo volume de veículos. Com isso, o trânsito parou e os usuários chegaram a esperar mais de uma hora por um ônibus. “Mas eles resolveram a situação. Mudaram o ponto de lugar: agora fica em cima de um bueiro. É um absurdo, as pessoas podem até quebrar o pé na correria. Vamos reclamar de novo”, avisa Alice. E essa nem foi a pior situação que a aposentada viveu como usuária de coletivos. “No ano passado, entrei em um microônibus e me sentei no banco ao lado do motorista. Pouco depois, entrou uma jovem que carregava uma pequena sacola e me obrigaram a descer do ônibus (porque o bilhete não estava habilitado para passar na catraca) e me sentar após a catraca, para dar lugar à jovem. É uma falta de respeito, principalmente pela minha idade. Reclamei, mas esqueci de anotar o número do veículo e a reclamação não valeu de nada”, lamenta.
Apesar das dificuldades, o poder para exigir dos governos as mudanças necessárias está nas mãos dos consumidores. “A primeira exigência é receber informação sobre o sistema e sobre os horários, para ajudar na fiscalização. Também deve-se pedir informação de como é calculada a tarifa. Além disso, pode-se avaliar a capacitação de técnicos e gestores do órgão de transporte da cidade”, orienta Érika. E quando as reclamações não dão resultado, o usuário pode questionar na Justiça. Dessa forma, os órgãos podem ser condenados a cumprir suas obrigações e ainda pagar indenização, conforme o prejuízo apurado em cada caso.
Serviço adequado a todos
Se você é usuário freqüente de ônibus, responda a mais esta questão: quantas vezes entrou em um coletivo que possuía acessibilidade para pessoas com deficiência? Esperar qualquer ônibus é demorado. Esperar um com acesso especial, então, é um teste de paciência. Atualmente, apenas 5% dos ônibus possuem plataforma elevatória (para acesso de cadeirantes), 2% têm piso rebaixado e menos de 2% operam em corredores com plataforma elevatória.
“Não há planejamento do espaço público. As calçadas, por exemplo, funcionam como extensão do espaço privado e não respeitam necessidades especiais das pessoas”, afirma Ana Maria Barbosa, coordenadora da Rede Saci, que discute direitos de pessoas com deficiência. A pesquisadora enfatiza que há muito o que fazer para garantir acessibilidade no transporte coletivo, mas não despreza a evolução no setor nos últimos anos. Para ela, toda adaptação é bem vinda, desde que cumpra as recomendações para acessibilidade e não prejudique nenhum usuário. “Não adianta facilitar a vida de um cadeirante e dificultar a de um idoso”, comenta sobre os ônibus com piso rebaixado e escadas antes e logo após a catraca.
Em julho, o Inmetro divulgou a Portaria 260/2007, que regulamenta as adaptações que devem ser feitas na frota nos próximos anos, garantindo acesso maior. Alguns dos itens contemplados são: características da plataforma elevatória, reposicionamento de bancos preferenciais e adoção de iluminação nos degraus. Boa parte da frota, ao ser renovada, vai contemplar essas modificações. Em São Paulo, por exemplo, ônibus de piso rebaixado e até os que têm escadas antes e após a catraca (que podem ser perigosos para a mobilidade dos idosos) já estão em circulação.
Curiosidades do transporte por ônibus
» A tarifa de ônibus mais barata é a de Belém do Pará, que custa R$ 1,35. A mais cara é a de São Paulo, que sai por R$ 2,30. Mas em termos relativos ao valor da cesta básica, a tarifa de Salvador é uma das que mais compromete o bolso
» Cerca de 37 milhões de brasileiros são excluídos do transporte coletivo por falta de dinheiro para pagar tarifa, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)
» A velocidade média dos ônibus nas grandes cidades brasileiras não chega a 15 quilômetros por hora, quando não há corredores preferenciais
» A frota de ônibus no país atende mais de 55 milhões de pessoas, com menos de 100 mil veículos
* Texto também publicado na Revista do Idec 114, de setembro de 2007
Pense no caminho entre sua casa e o ponto de parada de ônibus mais próximo. Quanto tempo você gasta e como são as calçadas no percurso? O ponto de parada possui iluminação, bancos para se sentar, informações sobre veículos e horário em que passam? Os ônibus circulam em intervalos regulares? Geralmente há lugar para se sentar e é possível chegar no horário a compromissos? Provavelmente, as respostas não são animadoras para os mais de 55 milhões de brasileiros que usam diariamente o transporte coletivo.
Os municípios devem regulamentar e fiscalizar os serviços públicos de transporte, delegados a empresas que os prestam por concessão. Também cabe aos governos melhorar condições de vias públicas e de pontos de parada, o que aumentaria a qualidade do transporte, mas pouco é feito. Caminhamos na contramão: a demanda pelo transporte coletivo urbano diminuiu nos últimos anos, principalmente pela ineficiência do sistema e pelas altas tarifas cobradas, gerando círculos viciosos que só pioram a situação dos usuários desse tipo de transporte. “As tarifas são calculadas dividindo o orçamento do serviço pelo número de passageiros pagantes. A elevação de preço reduz o número de pagantes. No reajuste, a ‘conta’ é dividida por um número menor de usuários, pressionando os valores para cima mais uma vez”, esclarece Marcos Bicalho, superintendente da Associação Nacional de Transportes Urbanos (ANTP).
Essa situação seria amenizada com políticas públicas de incentivo ao uso do transporte coletivo. Um bom exemplo, pouco seguido, é o de Curitiba, onde há planejamento integrado de transporte e uso do solo, além de continuidade política das ações de governo, ou seja, uma boa iniciativa não é destruída com a mudança de prefeitos. Já em São Paulo, uma das cidades mais congestionadas e poluídas do país, cinco novos corredores de ônibus (com mais de 50 quilômetros de extensão) serão construídos até 2008. Infelizmente, isoladamente, essa medida tende a não trazer resultados efetivamente benéficos. Políticas que poderiam ser tomadas em conjunto para ter melhores resultados são: a redução do preço do óleo diesel, o subsídio ao transporte de idosos e o planejamento da rede de linhas.
É claro que os governos não têm recursos disponíveis para investir o necessário, mas o que possuem é usado de formas questionáveis. “Salvo raras exceções, as políticas públicas continuam a estimular o crescimento do transporte individual e a penalizar o coletivo, sem contar com a carência de investimentos em infra-estrutura urbana para o transporte coletivo”, critica Bicalho. Além disso, o governo pouco fiscaliza o trabalho das empresas concessionárias, que como grupos privados, se preocupam essencialmente com o lucro. Os direitos do consumidor – como acessibilidade, freqüência de atendimento, tempo de viagem, lotação, segurança, sistemas de informação, estado das vias e comportamento dos operadores – são relegados ao esquecimento.
O que pode ser feito?
Os interesses em jogo são poderosos e a população é o elo mais frágil. Restringir ou encarecer o uso do automóvel, por exemplo, coloca o governo em colisão com a indústria automobilística. Combater o transporte clandestino pode causar choque com setores do Legislativo que assumem práticas clientelistas. Exigir melhores serviços das concessionárias, apesar de ser função dos governos, também causa atritos difíceis de contornar.
Como os problemas são muitos, somente em longo prazo algo vai mudar. No entanto, é direito do consumidor receber um serviço adequado e dever das empresas prestá-lo da melhor forma, com fiscalização dos governos. Entre as muitas políticas que podem amenizar a situação, Érika Kneib, arquiteta urbanista especializada em transportes coletivos urbanos, cita uma em especial: “o processo licitatório do sistema é fundamental para que os direitos dos usuários sejam garantidos. Quando o processo é adequado, o poder público exerce seu papel de gestor e fiscalizador”.
Já para Paulo César Marques da Silva, professor do Programa de Pós-Graduação em Transportes da Universidade de Brasília (UnB), a solução seria inverter as prioridades entre automóvel e transporte coletivo. “Se entendermos o consumidor de transporte como todo cidadão, então seus direitos são os constitucionais de ir e vir. E estão acima do direito individual de usar espaços públicos para fins privados”.
O lucro das empresas também costuma ficar acima dos direitos dos usuários. Elas não fazem política social e só existem se tiverem resultados financeiros positivos. Nesse ponto, é fundamental o subsídio de governos, para que o acesso não fique limitado ao poder econômico de cada cidadão. As soluções do transporte passam, necessariamente, por políticas públicas, e não por questionamentos nas relações de mercado. “Cabe aos usuários fazer reclamações e exigências ao poder público e não às empresas, que são apenas prestadoras do serviço”, esclarece Érika.
Infelizmente, a população nem sempre é ouvida. A aposentada Alice Victor de Oliveira, hoje com 70 anos e associada do Idec desde 1994, já reclamou muito do transporte coletivo de seu bairro, na zona sul de São Paulo. A partir de mudanças feitas na região, muitos ônibus não conseguiam mais passar por uma das ruas do itinerário, estreita e não adaptada para o novo volume de veículos. Com isso, o trânsito parou e os usuários chegaram a esperar mais de uma hora por um ônibus. “Mas eles resolveram a situação. Mudaram o ponto de lugar: agora fica em cima de um bueiro. É um absurdo, as pessoas podem até quebrar o pé na correria. Vamos reclamar de novo”, avisa Alice. E essa nem foi a pior situação que a aposentada viveu como usuária de coletivos. “No ano passado, entrei em um microônibus e me sentei no banco ao lado do motorista. Pouco depois, entrou uma jovem que carregava uma pequena sacola e me obrigaram a descer do ônibus (porque o bilhete não estava habilitado para passar na catraca) e me sentar após a catraca, para dar lugar à jovem. É uma falta de respeito, principalmente pela minha idade. Reclamei, mas esqueci de anotar o número do veículo e a reclamação não valeu de nada”, lamenta.
Apesar das dificuldades, o poder para exigir dos governos as mudanças necessárias está nas mãos dos consumidores. “A primeira exigência é receber informação sobre o sistema e sobre os horários, para ajudar na fiscalização. Também deve-se pedir informação de como é calculada a tarifa. Além disso, pode-se avaliar a capacitação de técnicos e gestores do órgão de transporte da cidade”, orienta Érika. E quando as reclamações não dão resultado, o usuário pode questionar na Justiça. Dessa forma, os órgãos podem ser condenados a cumprir suas obrigações e ainda pagar indenização, conforme o prejuízo apurado em cada caso.
Serviço adequado a todos
Se você é usuário freqüente de ônibus, responda a mais esta questão: quantas vezes entrou em um coletivo que possuía acessibilidade para pessoas com deficiência? Esperar qualquer ônibus é demorado. Esperar um com acesso especial, então, é um teste de paciência. Atualmente, apenas 5% dos ônibus possuem plataforma elevatória (para acesso de cadeirantes), 2% têm piso rebaixado e menos de 2% operam em corredores com plataforma elevatória.
“Não há planejamento do espaço público. As calçadas, por exemplo, funcionam como extensão do espaço privado e não respeitam necessidades especiais das pessoas”, afirma Ana Maria Barbosa, coordenadora da Rede Saci, que discute direitos de pessoas com deficiência. A pesquisadora enfatiza que há muito o que fazer para garantir acessibilidade no transporte coletivo, mas não despreza a evolução no setor nos últimos anos. Para ela, toda adaptação é bem vinda, desde que cumpra as recomendações para acessibilidade e não prejudique nenhum usuário. “Não adianta facilitar a vida de um cadeirante e dificultar a de um idoso”, comenta sobre os ônibus com piso rebaixado e escadas antes e logo após a catraca.
Em julho, o Inmetro divulgou a Portaria 260/2007, que regulamenta as adaptações que devem ser feitas na frota nos próximos anos, garantindo acesso maior. Alguns dos itens contemplados são: características da plataforma elevatória, reposicionamento de bancos preferenciais e adoção de iluminação nos degraus. Boa parte da frota, ao ser renovada, vai contemplar essas modificações. Em São Paulo, por exemplo, ônibus de piso rebaixado e até os que têm escadas antes e após a catraca (que podem ser perigosos para a mobilidade dos idosos) já estão em circulação.
Curiosidades do transporte por ônibus
» A tarifa de ônibus mais barata é a de Belém do Pará, que custa R$ 1,35. A mais cara é a de São Paulo, que sai por R$ 2,30. Mas em termos relativos ao valor da cesta básica, a tarifa de Salvador é uma das que mais compromete o bolso
» Cerca de 37 milhões de brasileiros são excluídos do transporte coletivo por falta de dinheiro para pagar tarifa, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)
» A velocidade média dos ônibus nas grandes cidades brasileiras não chega a 15 quilômetros por hora, quando não há corredores preferenciais
» A frota de ônibus no país atende mais de 55 milhões de pessoas, com menos de 100 mil veículos
* Texto também publicado na Revista do Idec 114, de setembro de 2007
Marcadores:
cidadania,
consumidor,
ônibus,
transporte público
Assinar:
Postagens (Atom)