Mostrando postagens com marcador Moçambique. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Moçambique. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, novembro 29, 2007

Uma mulher moçambicana

Paulina Chiziane fala baixo, como se ninasse um bebê. É escritora e trabalha em um programa das Nações Unidas para a promoção da mulher na Zambézia, uma das províncias de Moçambique. Hoje está vestida como manda a tradição: uma roupa colorida, feita com panos de capulana.

Conversamos em uma tarde de sol, na pensão em que me hospedei em Quelimane, capital da província. Ela fala da condição da mulher, das diferenças que existem entre as regiões do país, das influências que recebeu para se interessar pela luta das mulheres. Seu único livro publicado no Brasil, pela Companhia das Letras, se chama Niketche: uma história de poligamia.

Como começou a sua luta pelos direitos da mulher em Moçambique?

Paulina Chiziane (PC): Nas sociedades como a nossa, onde há guerras, catástrofes, migração assídua, os homens vão embora. As mulheres ficam e são elas que movem a vida. Mas quando chega a hora de retratar a mulher, de lhe dar algo, os homens são ausentes. Constato isso por toda minha vida. Descubro que existe o mundo da mulher que ninguém conhece ou que poucos conhecem; ou que só as próprias mulheres conhecem. Há de ser por isso que entrei nessa luta.

Você costuma dizer que existe uma diferença grande na relação homem-mulher e na maneira como as mulheres se vêem no sul e no norte do país. Como se dá essa diferença? Isso é marcante ainda hoje?

PC: É uma situação absolutamente atual. Aqui na Zambézia (e daqui para o norte do país) temos cidades marcadamente matriarcais. As mulheres têm voz mais ativa, têm um lugar social e têm algum poder. Por exemplo, quando vou às comunidades rurais desta província encontro histórias de mulheres que dizem: “eu não tenho uma relação sexual com meu marido há dois meses e por isso convoquei uma reunião de família”. Eu nunca tinha imaginado que isso acontecesse, mas aqui no norte acontece. O prazer sexual é um direito importante da mulher e as pessoas falam disso abertamente, nos seus grupos. Convocam a família para expor a situação.

Convocam a família dela ou a do marido também?

PC: A família dela primeiro, para discutir a questão. Depois desse passo, os mais velhos se responsabilizam por levar as informações para a família do marido, propondo uma solução. É incrível. Já no sul do país isso acontece pouco. Se o homem é impotente, não tem um desempenho saudável, a mulher tem que suportar, porque ela foi adquirida para isso, para suportar e mais nada. Até na maneira de se vestir as mulheres do norte são diferentes. Elas têm um colorido que alegra.

O vestuário tem a ver com a relação delas com o marido? Com o pai?

PC: Sim, tem a ver com a visão da vida e do mundo. Para elas a mulher tem que ser bela, alegre, agradável, sexualmente satisfeita. Nós não. Eu sou do Sul, e no sul a mulher tem que dizer “sim” a todas as coisas. A mulher é algo que deve ficar guardado em um cofre ou no guarda-roupa.

E você sabe me dizer qual é a origem dessa diferença?

PC: O sistema matriarcal. A partir da Zambézia, caminhando para o Norte, todas as regiões são matriarcais. A linhagem é pela via feminina. Quando há um casamento é o homem que se desloca para a família da mulher e lá fica, constrói a família e a casa. Quando os filhos nascem ganham o sobrenome da mãe e quando o casamento se dissolve é o homem que parte. As decisões desta região matriarcal não pertencem especificamente à mulher, mas ao irmão dela, ao tio dela. Assim, claro, decidem a favor da mulher. É por isso que elas possuem um estatuto que as mulheres do sul não têm. Também é interessante a abordagem das relações amorosas. No sul, a mulher faz de tudo: penteia-se, pinta-se, faz danças na frente do homem para que ele lhe diga algo. No norte não. A mulher diz ao homem: “gostei de ti, quero casar contigo, tranqüilamente”. (risos) De uma forma aberta, clara. Às vezes chega a dizer: “o senhor passou por aqui e não me viu, mas eu vi e gostei. Quer namorar comigo?” Fiquei chocada no princípio, mas me habituei. Se no sul uma mulher faz isso, recebe os apelidos mais horríveis. No dia seguinte todos falarão mal dessa mulher.

Existe um trabalho grande de conscientização com relação ao vírus HIV: cartazes pelas ruas, desenhos nas calçadas, propagandas na televisão... Esse trabalho alcança a população?

PC: Nós tivemos uma guerra terrível. A guerra acabou, mas agora temos a malária. É impressionante o número de pessoas que morrem com a malária, é impressionante o número de pessoas que morrem com cólera. Valerá a pena fazer a prevenção? Essa é a questão que fica na cabeça das pessoas. Infelizmente, mesmo a campanha sendo tão grande, o número de infectados não pára de aumentar. Acredito que seja por causa disso.

Qual a relação das mulheres com a religião, atualmente?

PC: Quando o país ficou independente, o sistema socialista adotado colocou em causa todas as igrejas e religiões: islâmica, tradicional, cristã. À medida que aumentou a guerra civil, o desespero foi grande e muitas pessoas se voltaram novamente para a religião. Hoje, a igreja tem um peso muito forte. É uma das novas formas de identidade.

E no mercado de trabalho, quais as mudanças para as mulheres?

PC: É um processo. Cada vez mais mulheres vão trabalhar e cada vez em melhores posições. Em toda a história de Moçambique, a mulher nunca esteve tão bem como agora. Somos um dos poucos países africanos onde a posição da mulher em termos políticos e em termos sociais é boa. A libertação nacional colocou a mulher em um campo de batalha, ela participou da guerra: foi o primeiro grande passo. Depois, a orientação marxista colocou a comissão da mulher na agenda política e alterou a legislação. Houve campanhas para a educação das raparigas. Hoje as mudanças são visíveis: temos um bom número de mulheres governando. Temos uma primeira ministra, uma das coisas mais extraordinárias que aconteceu no nosso país. Nas empresas privadas a mulher também conquistou postos de poder. Nas zonas rurais, entretanto, a situação ainda é diferente. As mudanças demoram a chegar. Mesmo assim, há um bom número de mulheres que sabem ler e escrever. Nas zonas matriarcais, há ainda as chefes tradicionais, chamadas de rainhas. A liderança da maior parte dos grupos tradicionais se concentra nessas mulheres. Mas o poder delas não significa riqueza. Entre a casa da rainha e a casa vizinha não se notam diferenças.

E como é a vida dessas rainhas? Qual o papel delas na sociedade?

PC: Em abril fui a uma região afetada pelas cheias, e tive que trabalhar com uma rainha. Quando ela chegou, eu pensei: “meu Deus, mas o que ela tem de rainha?”. Tínhamos que fazer palestras sobre a Aids, porque havia uma concentração de pessoas que não se conheciam, que fugiram das cheias e se concentravam ali. Tínhamos que fazer a distribuição de itens básicos de alimentação e higiene, mas estava uma confusão enorme. Todos queriam ser os primeiros. A polícia estava presente, os chefes formais também, mas ninguém conseguiu controlar a situação. Nesse momento a rainha disse: “sentem-se”. Apenas levantou a mão e todos se sentaram. E completou: “a distribuição será feita por famílias. Vou chamar as famílias da zona do Sol Nascente. Levantam-se!” Levantaram-se somente as famílias chamadas e foram buscar a sua comida, o seu sabão, na maior ordem. “Agora levantem-se os do Sol Poente!” Foi impressionante, não houve quem pudesse controlar a população da forma como aquela mulher fez. Nas crenças da população, essa chefe tradicional (escolhida por linhagem) é uma espécie de guardiã, nomeada divinamente. Para a comunidade, ela é a pessoa que estabelece pontes entre os antepassados (mortos) e os vivos. O poder da liderança feminina tradicional existe nessas regiões. E é único. Tudo isso faz parte da profissão da mulher. Há histórias interessantes que envolvem esse poder tradicional. Lembro-me de uma vez em que havia uma reunião local. Estavam presentes uma ministra e as rainhas tradicionais. A ministra, com todo o poder do Estado e das academias européias, apontou para uma das rainhas tradicionais para que ela se pronunciasse. A mulher simplesmente olhou e não abriu a boca. A ministra insistiu: “é consigo que estou a falar”. Nesse momento se levantaram alguns homens e disseram: “na nossa terra, na nossa tradição, ninguém pode apontar o dedo e ordenar qualquer coisa à nossa divina representante. Ela é nossa rainha!” A ministra não pôde dizer mais nada. Para mim, há momentos em que parece haver inveja, conflitos entre o poder formal e o tradicional. O poder tradicional é muito forte em nossa terra.

Existe alguma representação dos poderes tradicionais no estado formal?

PC:
Existe, mas é algo carnavalesco, só para fazer festa.

O principal ponto desse poder é a ponte entre os antepassados e os viventes?

PC: Exato. E é bom ver que as pessoas veneram o seu líder (ou a sua líder), porque é uma pessoa igual a elas, que vive e sofre como elas. Os chefes preferem ficar sem nada para que os outros tenham. Posso me enganar, claro. Os seres humanos são complexos e há pessoas que abusam do poder que têm por causa de suas ambições. Mas, quando comparo os dois poderes...

Sobre o futuro da mulher moçambicana, ainda existem tabus que impedem a igualdade de direitos? Como você vê a sociedade daqui para frente?

PC: Os 30 anos de independência mostraram que a vida da mulher pode mudar para melhor. Ela pode ter um bom emprego, um bom salário etc. Mas também pode piorar, porque a mesma mulher que vai ao parlamento tem de voltar à casa para cozinhar, lavar e cuidar dos filhos. À medida que a mulher tem acesso ao novo mundo e a novos recursos, a sobrecarga na vida dela aumenta. O que está a acontecer com algumas mulheres é que elas lutam, vencem, e o produto do seu trabalho vai para as mãos do homem, que depois diz: “como não tens tempo para estar aqui, fui arranjar a segunda mulher”. Quantos casos de mulheres que eu conheço não são iguais a este? O marido pegou o dinheiro dela para ir casar com uma nova mulher, “porque não tens tempo para lavar, para cuidar de mim... Já que tens muito jeito para trabalhar, vai. Agora arranjei uma para me fazer café, pão”. É a nova escravatura das mulheres. A situação muda na aparência e há sempre outras formas de dominação. As mulheres modernas são máquinas de trabalho, não têm tempo para cuidar da casa. Trazem mais pão, que depois vai para as mãos de uma outra mulher que não trabalha. É um horror! Mas a situação vai melhorar. Temos um governo que defende a posição da mulher, a legislação tende a mudar cada dia para melhor. Ainda ontem assisti à graduação em um curso de formação de médicos, onde 46 pessoas eram mulheres. Isso era impensável há seis anos. Primeiro o diploma, depois o emprego e, por fim, a libertação da escravatura. Já os hábitos tradicionais são muito mais difíceis de mudar, mas a legislação está caminhando e a mudança virá. Estou com otimismo.

*entrevista concedida por Paulina Chiziane em maio de 2007

domingo, setembro 09, 2007

Morte do pai de Eva

Ah, vocês, gente do sul – aponta a Lu numa voz acusatória. – Sou sena. Entre nós, os senas, a morte é íntima. Tão íntima como o beijo, como o amor, como o nascimento. A morte diz respeito a um núcleo apenas. Os parentes e amigos apresentam pêsames, mas não se detêm para não serem conspurcados pelo espectro da morte. Aqui no sul, a morte é celebração, é festa. Uma oportunidade boa para comer sem pagar. Com a elevada mortalidade que há, conheço gente que anda de funeral em funeral, a cantar, a chorar, comer e engordar sem a menor despesa. Digam-me vocês todas. Quem vai encher as panças de toda essa gentalha?

Espanta-me a rapidez com que chegaram à conclusão da morte e à urgência de me chamarem de viúva. (...) Entram no meu quarto e desmontam os móveis para abrir espaço e cobrem toda a mobília com lençóis brancos. Arrastaram-me para um canto, raparam-me o cabelo à navalha e vestiram-me de preto. Acabava de perder poderes sobre o meu corpo e sobre a minha própria casa. (...) Chega gente de várias direções numa procissão de formigas. Em poucos instantes enchem-me a casa. Nos dias que correm, dá-se mais valor à morte que à vida e a morte é mais importante que o nascimento. As mulheres gostam de velórios. Nos velórios podem uivar todas as suas dores como lobos na noite, purificam os seus corpos de ácidos, na torrente de lágrimas. Quando a garganta seca e a força se esgota, recarregam a energia com chá e açúcar, pão e manteiga, paga pela família do morto. Os homens gostam de velórios para descansar, jogar ntchuva, damas, cartas, cavaquear sobre política, futebol e mulheres. O velório é um momento bom para vomitar infâmias, exorcizar fantasmas, apunhalar inimigos, rever parentes e velhos amigos e receber algum espólio. Na morte todos se reúnem e choram, mas em vida o homem combate só.
(Niketche: uma história de poligamia, de Paulina Chiziane - Cia. das Letras)

Os soldados e comandantes estão enfileirados. À frente, os músicos tocam uma marcha fúnebre. Uma imensidão de pessoas se aglomera. Os militares apontam suas armas para cima, batem os pés no chão e se voltam para a frente. O movimento se repete duas vezes. Voltam à cena os músicos, que encerram a marcha. Em um comando, a tropa se alinha, dá meia volta e se retira da frente da entrada do local em que acontece o velório do pai de Eva. A multidão se aperta para entrar no recinto e não há ordem por idade, gênero ou raça. Todos querem ir à frente.

Hoje é sexta-feira e a morte dele ocorreu na segunda, um dia após eu me mudar para a casa de Eva. Sou a única branca no velório e me aglomero para participar da cerimônia.

O local em que está o corpo é uma sala de uns 30 metros quadrados. No centro, acima dos quatro degraus de cimento, está o caixão. As paredes são claras e as únicas cores pertencem às flores depositadas: brancas, amarelas e vermelhas. Nas escadas, há uma foto emoldurada, em preto e branco, do coronel falecido. Do lado esquerdo, os militares que trabalharam com ele. À direita, os familiares, vestidos de preto. As mais velhas, com capulanas pretas amarradas na cabeça. No alto das escadas, bem no fundo, há velhos que entoam canções no dialeto local. Músicas tristes, ritmadas, envolventes.

Entro, espremida , e vejo uma tia de Eva apoiando nos braços uma senhora bem velha. Ela tem lágrimas nos olhos e apenas pisca quando me vê. À frente estão Eva e seus irmãos, de braços dados ou se apoiando mutuamente. Subo as escadas. Do alto, vemos o caixão aberto, mas coberto por uma pequena toalha de renda. Descemos em fila indiana, até o lado de fora do velório.

Saio com lágrimas por todo o rosto, tremendo, com a sensação de que a cerimônia é forte demais. Os cantos são profundos, tristes. A multidão chega a centenas de pessoas.

Como manda a tradição

Em África, a tradição tem presença muito forte, embora não faça parte do cotidiano dos jovens. Assim que tiveram a notícia, os mais próximos se juntaram na casa do falecido. E assim devem ficar durante 15 dias. São feitas reuniões de família para estipular quando os parentes mais distantes estarão presentes e só com essa confirmação o enterro é marcado. Até lá, todos permanecem na mesma casa.

Apesar da tristeza, a morte deve significar união entre os familiares. Mas também significa ter muitos gastos. Como o pai de Eva era da banda militar, os custos do funeral serão pagos pelo Estado. As outras despesas, no entanto, ficam com os filhos: todos os que vêm de longe serão alimentados por eles nas duas semanas que se seguem à morte, data em que podem retornar às suas casas.

Durante esse tempo, as reuniões familiares são praticamente diárias. Uma delas foi para decidir onde seria feito o enterro. Os filhos, que vivem em Maputo, queriam o pai enterrado nessa cidade. Os irmãos mais velhos (as titias, como diz Eva), exigiam que o corpo fosse levado a Manjacaze, na província de Gaza, onde ele nasceu. Diziam que os mais novos não entendem nada e que se o corpo fosse enterrado na capital, os jovens não teriam mais apoio dos velhos. Venceu a tradição.

Também mandam os costumes que, quando um parente morre, não se pode namorar. O sexo fica proibido até o final das cerimônias fúnebres. Eva me pergunta se é assim também no Brasil.

Logo após a notícia da morte, os familiares se reúnem na casa do falecido. Todos os mais velhos ficam na sala. Os homens sentam-se do lado esquerdo, em cadeiras. As mulheres, todas com capulanas amarradas, ficam do lado direito e se aglomeram no chão, deitadas em esteiras de palha. Elas expressam tristeza, pois assim deve ser, me dizem. Os mais jovens ficam no quarto: homens e mulheres no mesmo espaço.

Mesmo com tanta tradição presente, há situações que poderiam se dar em qualquer parte do mundo, como as brigas por bens. Os irmãos do falecido discutem com os filhos para saber quem ficará com a herança do velho militar. Em cada uma dessas brigas, os parentes votam o que deve ser feito.

Para decidir a roupa do enterro, também foi feita uma reunião. Dessa também participaram os militares. E a família não tinha poder. Ele deve ser enterrado com a roupa de trabalho. O chapéu do exército, entretanto, ficará para o filho mais velho.

Como os familiares devem ficar reunidos desde a morte até que se encerrem as cerimônias, é preciso que tenham folga no trabalho. E têm. Dependendo da empresa, os parentes de primeiro grau recebem até duas semanas. Para os mais distantes, apenas uma semana. Eva, mesmo sendo filha, ganhou uma semana só.

Por feitiço

Quando tinha 12 anos, Eva perdeu a mãe. Após a morte dela, seu pai teve outra mulher, com quem também teve filhos. Eles se separaram, mas essa mulher foi hoje ao velório na casa do falecido. Eva e sua irmã, no entanto, a expulsaram de lá. “É uma feiticeira”, grita.

Pergunto se ela tem algum poder e Eva afirma que sim. Desejava a morte do ex-marido e só foi lá para confirmar. Não sofria de verdade.

Em Moçambique há feiticeiros, que têm poder para o bem e para o mal. “Meu Deus, estou enfeitiçado!”, gritou a personagem de Mia Couto em Terra Sonâmbula. “A cabra me deitou feitiço... a puta estava com os sangues, raios a partam... grande puta: estavas menstruada!”. O escritor ainda explica: “vinha à mente a voz da crença, condenando aquele que ama uma mulher em estado de impureza. Também o português punha crédito em tais africanas maldições: nele os sangues haveriam de escorrer, transbordantes.” Em casos como esse, os enfeitiçados têm uma única forma de se livrarem da maldição, que é fazer um corte no pescoço. O problema surge quando pensamos em uma sociedade onde mais de 1,5 milhão de pessoas estão infectadas pelo HIV. As facas estarão desinfetadas?

A crença em feitiços está enraizada na cultura e tenta explicar a sociedade. Tuberculose e hérnia, por exemplo, são doenças de quem dormiu com viúva que ainda está no período de luto. E nenhum marido desconfiaria de traição se a mulher ostentar um osso de cabrito dentro de casa, mesmo que ela tenha engravidado no ano em que ele se encontrava fora da cidade. Esse osso permite que uma pessoa esteja em dois lugares ao mesmo tempo. Atualmente, muitos acreditam que esses feitiços ocorrem e são totalmente verdadeiros. Muitos outros acreditam que são apenas mitos, lendas que enriquecem a cultura moçambicana.

domingo, agosto 19, 2007

Maldição na machamba

Era uma vez uma machamba (plantação). Uma comunidade de macaquinhos se alimentava do que era produzido em suas terras. Em um dia feio de verão, sem aviso, ratos invadiram a plantação. Foi uma peste violenta. Para controlar a praga, os macacos decidiram comprar veneno e jogaram a isca em todo o terreno. Assim, viveriam felizes para sempre.

Em poucos dias todos os ratos morreram, mas algo inesperado ocorreu. Os macacos também estavam doentes. Todos que se alimentavam morriam como as pestes. Preocupados, eles se juntaram novamente para esclarecer os acontecimentos: os que comeram as plantas da machamba, depois de jogado o veneno contra a praga, morreram envenenados.

Agora, restavam apenas quatro macacos na comunidade. Um deles decidiu que não comeria mais, para não se envenenar. Ele colocou, para sempre, suas mãos tampando a boca. O segundo decidiu que não queria ver mais mortes em sua comunidade e colocou as mãos nos olhos, para nunca enxergar nada. O terceiro resolveu tampar os ouvidos, pois assim não ouviria mais histórias tristes. O último, nunca mais brincaria. As mortes dos outros macacos lhe tiraram a alegria de viver.

Lilo e os macaquinhos

Caminho em direção à feira de artesanato de Nampula, cidade do norte de Moçambique. As primeiras barracas vendem panos para limpar o chão. À frente, vendedores amontoam pares de calçados usados, colocados uns em cima dos outros, com pares afastados no meio de outros tantos.

Entro no meio das barracas. A feira abrange quarteirões inteiros, se enredando pelo meio de um campo, pelas calçadas e pela rua. Em barracas mais afastadas há peças em madeira, em palha e em marfim. Em Moçambique, o importante é saber pechinchar. No geral, a mercadoria vale – ou é vendida – pela metade do preço ofertado inicialmente. Há também roupas, bijuterias, pequenos gorros tricotados a mão, tapetes e vassouras de palha.

Enquanto me perco nos diversos corredores, um rapazinho me segue. Ele segura quatro macaquinhos de madeira nas mãos e insiste para que eu compre sua mercadoria. Repito que não quero, que não tenho dinheiro, que já comprei o que queria. Ele me pede, então, que eu apenas escute a história da comunidade desses macaquinhos. Lilo me convenceu e comprei os quatro. Por todo o país comprovei que sua história é verdadeira.

Problemas nacionais

Moçambique é assolado por pragas e calamidades naturais mais de uma vez por ano. Em 1994 e 1996, gafanhotos vermelhos invadiram as províncias de Manica, Tete, Sofala, Zambézia e Niassa. As culturas foram destruídas e milhões de pessoas tiveram a fome acentuada nesses períodos. Pragas causadas por ratos também são um problema de saúde pública no país.

As cheias são praticamente anuais. As terras cultivadas inundam, há danos nas estradas, sistemas de água e saneamento são destruídos. Em fevereiro de 2000, ciclones se somaram às cheias, nas cidades de Maputo e Matola. Mais de 650 mil pessoas foram afetadas, milhares de hectares cultivados foram perdidos e grande quantidade de gado morreu afogada.

Neste ano, as calamidades naturais também não ficaram longe dos moçambicanos. Houve ciclones no sul, centro e norte do país. Além de cheias no centro. As pessoas perderam casas, machambas e árvores (que simbolizam os seus antepassados). Perderam parentes e amigos. E as cheias vão continuar, as ventanias também, trazendo mais calamidades no futuro. “Mas os moçambicanos devem ter força de superar as adversidades, dado que venceram inimigos mais fortes no passado. O povo já mostrou que é heróico, corajoso e sábio, características indispensáveis para ultrapassar a dor que todos sentimos neste momento”, declara Armando Guebuza, presidente do país e da Frelimo (partido no poder desde a independência).

Infelizmente, apenas palavras de esperança não vão resolver os problemas dos próximos anos. A construção de barragens, por exemplo, é um sério projeto de infra-estrutura que devia ser pensado com urgência. Assim como todos os outros projetos de infra-estrutura em andamento há anos, sem sair do papel, comuns em países como os nossos.

sexta-feira, julho 27, 2007

Eva

A porta do banheiro fica ao lado da porta de ferro preta do apartamento. É de madeira envelhecida, pintada de branco, mas com camadas descoloridas. Não possui chave nem trinco. Entro e a lâmpada está queimada. No fundo, um degrau de cimento foi construído com um buraco no meio, onde devemos fazer todas as necessidades e também tomar banho. A água usada deve cair no buraco e, provavelmente, poderá ser vista na calçada depois. Eva me mostra como devo fazer para me banhar “de canequinha”. Coloco a água que ela esquentou por cerca de 30 minutos em um pote pequeno, de plástico. Molho meu corpo e me ensabôo. Ao sair da casa de banho, enrolada em uma toalha, há pessoas no corredor que desviam seus olhares para mim. Passo rápido e entro no dormitório.

Hoje me mudei para a casa de Eva, uma jovem moçambicana da capital. Ficarei na casa dela durante minha estadia em Maputo. À entrada do prédio não há porteiro, nem grades, nem portas. É apenas uma escada, que surge ao final de um corredor. O dormitório fica no terraço, e a impressão é de que subimos quatro andares. Além da falta de limpeza, não há luz nas escadas.

Entro no dormitório. O primeiro cômodo é a sala, onde há um sofá confortável de cinco lugares, que tem uma cor entre o vinho e o marrom. No canto esquerdo, ficam a televisão, um aparelho de som e o ventilador. As paredes são azuis, com remendos na textura, e a única janela é um pedaço da parede sem cimento, com grades e uma tela. O teto é de telhas de zinco.

Atrás dos sofás, de frente para a TV, estão a geladeira, o fogão elétrico e um grande barril azul – onde é depositada a água que servirá para nossos banhos, para lavar a louça e para fazer comida. A porta entre os sofás e a geladeira é a entrada do quarto, onde há duas camas grandes, muitos sapatos enfileirados, cremes e bijuterias.

A receptividade de Eva é algo incomum. Mas não para Moçambique, onde todos procuram me agradar. Timidamente, se desculpando, ela me conta do problema de seu apartamento: o banheiro fica do lado de fora e é comunitário. E, na verdade, não é um banheiro. “É assim”, sussurra, abrindo a porta.

Promessa para cinco anos

Assim como Eva, que não tem banheiro nem torneiras em sua casa, sobrevive metade da população. Pouco mais de 40% dos moçambicanos têm água em sua residência e, no campo, os índices chegam a ser nulos. Quando se trata de saneamento, o acesso também é precário: passou de 6% em 1980 para 30% em 1993 e 40% na última década.

O governo prometeu melhorar a situação nos próximos cinco anos, mas as mudanças são lentas. Teve início em abril deste ano um projeto de ampliação da rede de abastecimento nas cidades de Maputo, Matola e vila de Boane – no sul do país. Os gastos serão da ordem de 95 milhões de euros, vindos do Banco Europeu de Investimentos, da União Européia, do Governo da Holanda e da Agência Francesa de Desenvolvimento, com colaboração do próprio governo de Moçambique.

Embora saiba como amarrar o lenço na cabeça, Eva não segue a tradição nas roupas. Tem capulanas, mas elas só saem do armário em situações especiais. Quando fala de sua casa diz que pretende, em breve, procurar outra com melhores condições sanitárias.

A capacidade de produção e de transporte deve ser ampliada para o dobro do que existe hoje. Prevê-se que a disponibilidade de água seja de 24 horas por dia, chegando a um milhão e meio de pessoas nessa região. Embora as perspectivas sejam animadoras, ampliando o acesso, boa parte da população ficará de fora da modernização, que chegará a apenas 73% das pessoas.

Isso se falarmos da capital. Em outras províncias e mesmo no interior de Maputo, não há projetos como esse em andamento. Enquanto isso, a inadequada gestão e utilização de água pela população, o modo como se lida com os resíduos e os hábitos de higiene pessoal contribuem para a proliferação de focos de desenvolvimento de doenças como diarréias, disenteria e cólera. Atualmente, a diarréia é responsável por 13% das mortes de crianças com menos de cinco anos no país.

As cheias freqüentes também contribuem para essa situação caótica. Destruíram ou fizeram com que os sistemas de esgoto e de água deixassem de funcionar. Isso leva, periodicamente, a uma cobertura mínima de água tratada nas áreas afetadas e à poluição das fontes de água expostas. Quem sofre são sempre os mais pobres.

quarta-feira, julho 25, 2007

Cheiros mais fortes


* este foi um dos textos que mais gostei de escrever. Ele é extremamente sensorial e por isso acho que é uma das cenas que melhor consegui descrever e que melhor descrevem o que vivi em Moçambique. A foto é a capa do meu trabalho.


São quatro horas da manhã e o despertador acaba de tocar. O chapa (uma pequena lotação bastante destruída) é pontual e está passando na porta da pensão. Entro rápido e vou para o fundo. Os assentos são desconfortáveis, feitos de pequenos filetes de madeira cobertos por plásticos sujos e grossos, na cor vermelha.

Esse chapa nos levará ao ponto terminal do lado continental da Ilha de Moçambique, onde pegarei outro veículo para Nampula. O motorista dá voltas pela Ilha para pegar passageiros e passa mais uma vez em frente à pensão onde me hospedei. Chega à ponte para ir ao continente, mas pára alguns instantes, dá meia volta e começa a circular novamente pela ilha. Olho para as pessoas e sorrio; não há o que fazer.

Ao meu lado sentou-se uma senhora gorda com roupas sujas. A impressão é de são as mesmas roupas utilizadas durante toda a semana. Seu cheiro é azedo, como o dos ônibus de São Paulo em dias chuvosos de verão. Os passageiros mantêm os vidros fechados e, aos poucos, o chapa começa a ganhar um aroma mais forte: como uma mistura de peixe com um tempero agridoce. Meu estômago está se revirando e nenhuma tentativa de escapar desse cheiro é suficiente. Olho para cima, para ver se acima de nossas cabeças o ar circula mais. Abro um pequeno pedaço do vidro à frente, mas outro passageiro logo o fecha. Faço esforço para cochilar e as coisas melhoram um pouco.

Atrás de nossos assentos o sol nasce. O chapa pára em frente à ponte e, agora, atravessa. Mal acredito. Mesmo em cima da ponte, no entanto, continua indo e voltando para pegar pessoas e encher o carro, que já está lotado. Chegamos ao ponto final às 5h30 e faço a baldeação para o chapa que nos levará até Nampula. Nossas malas são colocadas no capô, amarradas por cordas. A espera para a partida é longa e, nessas situações, todo cuidado é pouco. Há batedores de carteira, ladrões de malas e os que se aproveitam da lotação para furtar bens dos passageiros distraídos. Em alguns terminais de chapas foram, inclusive, instalados postos policiais.

Sento no último banco, o único com lugares vagos. No espaço em que deveriam ficar quatro pessoas, se equilibram cinco. Ao meu lado, uma mulher muito bonita carrega um bebê que chora. A sensação não é, nem com muito esforço, melhor do que a do carro anterior. Ao contrário, o cheiro de peixe parece mais intenso agora. A viagem é longa, o cheiro é insuportável, cada vez mais pessoas entram no chapa e se empoleiram. Conto mais de cinqüenta passageiros.

Mercados de estrada

Pela estrada, paramos em todas as pequenas cidades que ficam no caminho entre a Ilha de Moçambique e Nampula – capital da província. Em cada uma das paradas, enquanto homens e mulheres descem do veículo para fazer xixi no mato, as janelas do chapa são invadidas: por cheiros de frutas e por vendedores de guloseimas, de legumes, de bebidas alcoólicas, de galinhas vivas, de carregadores de celular, de sapatos, de relógios, de capulanas, de bonés, de perfumes falsificados, de todo tipo de produto que se possa imaginar. Sempre há vendedores de limão e de ovos. Inicialmente, me pergunto para quê alguém na estrada compraria um ovo e como esse ovo chegaria inteiro ao destino. Mas logo percebo que aqueles ovos são cozidos. O passageiro compra, o vendedor quebra a casca na parte de baixo e coloca ali o tempero que o consumidor desejar: uma pitada de sal ou de piri-piri, a pimenta de Moçambique. Logo, aos passageiros se juntam também sacos e mais sacos de todos os tipos de frutas e de legumes, algumas cascas de ovos e até galinhas vivas.

Do lado de fora, assistimos a um fenômeno social. Para fugir do desemprego e tentar sobreviver, cada vez mais pessoas se aglomeram pelas estradas do país, vendendo todo tipo de gêneros. Os vendedores desafiam veículos em movimento e chegam a atravessar a rodovia correndo com seus produtos na cabeça, para convencer o cliente que está do outro lado a comprar. E desafiam também outros vendedores: cada um tenta vender a um único passageiro todos os produtos que possui, de tal maneira que este fica tão atrapalhado que muitas vezes se vê comprando algo desnecessário.

São jovens de todas as idades, crianças, velhos, homens e mulheres. Nos mercados de estrada, não há distinção entre os vendedores. A mesma insistência e correria faz parte deles. O que muda de uma parada para a outra são os cheiros: de limão, de mandioca, de goiaba, de banana, de castanha, de pão, de ovo, de peixe frito, de carne assada. Todos esses guerreiam com o cheiro do próprio chapa – com mercadorias dos mais diversos gêneros e lotado de perfumes naturais.