quarta-feira, julho 25, 2007

Cheiros mais fortes


* este foi um dos textos que mais gostei de escrever. Ele é extremamente sensorial e por isso acho que é uma das cenas que melhor consegui descrever e que melhor descrevem o que vivi em Moçambique. A foto é a capa do meu trabalho.


São quatro horas da manhã e o despertador acaba de tocar. O chapa (uma pequena lotação bastante destruída) é pontual e está passando na porta da pensão. Entro rápido e vou para o fundo. Os assentos são desconfortáveis, feitos de pequenos filetes de madeira cobertos por plásticos sujos e grossos, na cor vermelha.

Esse chapa nos levará ao ponto terminal do lado continental da Ilha de Moçambique, onde pegarei outro veículo para Nampula. O motorista dá voltas pela Ilha para pegar passageiros e passa mais uma vez em frente à pensão onde me hospedei. Chega à ponte para ir ao continente, mas pára alguns instantes, dá meia volta e começa a circular novamente pela ilha. Olho para as pessoas e sorrio; não há o que fazer.

Ao meu lado sentou-se uma senhora gorda com roupas sujas. A impressão é de são as mesmas roupas utilizadas durante toda a semana. Seu cheiro é azedo, como o dos ônibus de São Paulo em dias chuvosos de verão. Os passageiros mantêm os vidros fechados e, aos poucos, o chapa começa a ganhar um aroma mais forte: como uma mistura de peixe com um tempero agridoce. Meu estômago está se revirando e nenhuma tentativa de escapar desse cheiro é suficiente. Olho para cima, para ver se acima de nossas cabeças o ar circula mais. Abro um pequeno pedaço do vidro à frente, mas outro passageiro logo o fecha. Faço esforço para cochilar e as coisas melhoram um pouco.

Atrás de nossos assentos o sol nasce. O chapa pára em frente à ponte e, agora, atravessa. Mal acredito. Mesmo em cima da ponte, no entanto, continua indo e voltando para pegar pessoas e encher o carro, que já está lotado. Chegamos ao ponto final às 5h30 e faço a baldeação para o chapa que nos levará até Nampula. Nossas malas são colocadas no capô, amarradas por cordas. A espera para a partida é longa e, nessas situações, todo cuidado é pouco. Há batedores de carteira, ladrões de malas e os que se aproveitam da lotação para furtar bens dos passageiros distraídos. Em alguns terminais de chapas foram, inclusive, instalados postos policiais.

Sento no último banco, o único com lugares vagos. No espaço em que deveriam ficar quatro pessoas, se equilibram cinco. Ao meu lado, uma mulher muito bonita carrega um bebê que chora. A sensação não é, nem com muito esforço, melhor do que a do carro anterior. Ao contrário, o cheiro de peixe parece mais intenso agora. A viagem é longa, o cheiro é insuportável, cada vez mais pessoas entram no chapa e se empoleiram. Conto mais de cinqüenta passageiros.

Mercados de estrada

Pela estrada, paramos em todas as pequenas cidades que ficam no caminho entre a Ilha de Moçambique e Nampula – capital da província. Em cada uma das paradas, enquanto homens e mulheres descem do veículo para fazer xixi no mato, as janelas do chapa são invadidas: por cheiros de frutas e por vendedores de guloseimas, de legumes, de bebidas alcoólicas, de galinhas vivas, de carregadores de celular, de sapatos, de relógios, de capulanas, de bonés, de perfumes falsificados, de todo tipo de produto que se possa imaginar. Sempre há vendedores de limão e de ovos. Inicialmente, me pergunto para quê alguém na estrada compraria um ovo e como esse ovo chegaria inteiro ao destino. Mas logo percebo que aqueles ovos são cozidos. O passageiro compra, o vendedor quebra a casca na parte de baixo e coloca ali o tempero que o consumidor desejar: uma pitada de sal ou de piri-piri, a pimenta de Moçambique. Logo, aos passageiros se juntam também sacos e mais sacos de todos os tipos de frutas e de legumes, algumas cascas de ovos e até galinhas vivas.

Do lado de fora, assistimos a um fenômeno social. Para fugir do desemprego e tentar sobreviver, cada vez mais pessoas se aglomeram pelas estradas do país, vendendo todo tipo de gêneros. Os vendedores desafiam veículos em movimento e chegam a atravessar a rodovia correndo com seus produtos na cabeça, para convencer o cliente que está do outro lado a comprar. E desafiam também outros vendedores: cada um tenta vender a um único passageiro todos os produtos que possui, de tal maneira que este fica tão atrapalhado que muitas vezes se vê comprando algo desnecessário.

São jovens de todas as idades, crianças, velhos, homens e mulheres. Nos mercados de estrada, não há distinção entre os vendedores. A mesma insistência e correria faz parte deles. O que muda de uma parada para a outra são os cheiros: de limão, de mandioca, de goiaba, de banana, de castanha, de pão, de ovo, de peixe frito, de carne assada. Todos esses guerreiam com o cheiro do próprio chapa – com mercadorias dos mais diversos gêneros e lotado de perfumes naturais.

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