Ah, vocês, gente do sul – aponta a Lu numa voz acusatória. – Sou sena. Entre nós, os senas, a morte é íntima. Tão íntima como o beijo, como o amor, como o nascimento. A morte diz respeito a um núcleo apenas. Os parentes e amigos apresentam pêsames, mas não se detêm para não serem conspurcados pelo espectro da morte. Aqui no sul, a morte é celebração, é festa. Uma oportunidade boa para comer sem pagar. Com a elevada mortalidade que há, conheço gente que anda de funeral em funeral, a cantar, a chorar, comer e engordar sem a menor despesa. Digam-me vocês todas. Quem vai encher as panças de toda essa gentalha?
Espanta-me a rapidez com que chegaram à conclusão da morte e à urgência de me chamarem de viúva. (...) Entram no meu quarto e desmontam os móveis para abrir espaço e cobrem toda a mobília com lençóis brancos. Arrastaram-me para um canto, raparam-me o cabelo à navalha e vestiram-me de preto. Acabava de perder poderes sobre o meu corpo e sobre a minha própria casa. (...) Chega gente de várias direções numa procissão de formigas. Em poucos instantes enchem-me a casa. Nos dias que correm, dá-se mais valor à morte que à vida e a morte é mais importante que o nascimento. As mulheres gostam de velórios. Nos velórios podem uivar todas as suas dores como lobos na noite, purificam os seus corpos de ácidos, na torrente de lágrimas. Quando a garganta seca e a força se esgota, recarregam a energia com chá e açúcar, pão e manteiga, paga pela família do morto. Os homens gostam de velórios para descansar, jogar ntchuva, damas, cartas, cavaquear sobre política, futebol e mulheres. O velório é um momento bom para vomitar infâmias, exorcizar fantasmas, apunhalar inimigos, rever parentes e velhos amigos e receber algum espólio. Na morte todos se reúnem e choram, mas em vida o homem combate só.
(Niketche: uma história de poligamia, de Paulina Chiziane - Cia. das Letras)
Os soldados e comandantes estão enfileirados. À frente, os músicos tocam uma marcha fúnebre. Uma imensidão de pessoas se aglomera. Os militares apontam suas armas para cima, batem os pés no chão e se voltam para a frente. O movimento se repete duas vezes. Voltam à cena os músicos, que encerram a marcha. Em um comando, a tropa se alinha, dá meia volta e se retira da frente da entrada do local em que acontece o velório do pai de Eva. A multidão se aperta para entrar no recinto e não há ordem por idade, gênero ou raça. Todos querem ir à frente.
Hoje é sexta-feira e a morte dele ocorreu na segunda, um dia após eu me mudar para a casa de Eva. Sou a única branca no velório e me aglomero para participar da cerimônia.
O local em que está o corpo é uma sala de uns 30 metros quadrados. No centro, acima dos quatro degraus de cimento, está o caixão. As paredes são claras e as únicas cores pertencem às flores depositadas: brancas, amarelas e vermelhas. Nas escadas, há uma foto emoldurada, em preto e branco, do coronel falecido. Do lado esquerdo, os militares que trabalharam com ele. À direita, os familiares, vestidos de preto. As mais velhas, com capulanas pretas amarradas na cabeça. No alto das escadas, bem no fundo, há velhos que entoam canções no dialeto local. Músicas tristes, ritmadas, envolventes.
Entro, espremida , e vejo uma tia de Eva apoiando nos braços uma senhora bem velha. Ela tem lágrimas nos olhos e apenas pisca quando me vê. À frente estão Eva e seus irmãos, de braços dados ou se apoiando mutuamente. Subo as escadas. Do alto, vemos o caixão aberto, mas coberto por uma pequena toalha de renda. Descemos em fila indiana, até o lado de fora do velório.
Saio com lágrimas por todo o rosto, tremendo, com a sensação de que a cerimônia é forte demais. Os cantos são profundos, tristes. A multidão chega a centenas de pessoas.
Como manda a tradição
Em África, a tradição tem presença muito forte, embora não faça parte do cotidiano dos jovens. Assim que tiveram a notícia, os mais próximos se juntaram na casa do falecido. E assim devem ficar durante 15 dias. São feitas reuniões de família para estipular quando os parentes mais distantes estarão presentes e só com essa confirmação o enterro é marcado. Até lá, todos permanecem na mesma casa.
Apesar da tristeza, a morte deve significar união entre os familiares. Mas também significa ter muitos gastos. Como o pai de Eva era da banda militar, os custos do funeral serão pagos pelo Estado. As outras despesas, no entanto, ficam com os filhos: todos os que vêm de longe serão alimentados por eles nas duas semanas que se seguem à morte, data em que podem retornar às suas casas.
Durante esse tempo, as reuniões familiares são praticamente diárias. Uma delas foi para decidir onde seria feito o enterro. Os filhos, que vivem em Maputo, queriam o pai enterrado nessa cidade. Os irmãos mais velhos (as titias, como diz Eva), exigiam que o corpo fosse levado a Manjacaze, na província de Gaza, onde ele nasceu. Diziam que os mais novos não entendem nada e que se o corpo fosse enterrado na capital, os jovens não teriam mais apoio dos velhos. Venceu a tradição.
Também mandam os costumes que, quando um parente morre, não se pode namorar. O sexo fica proibido até o final das cerimônias fúnebres. Eva me pergunta se é assim também no Brasil.
Logo após a notícia da morte, os familiares se reúnem na casa do falecido. Todos os mais velhos ficam na sala. Os homens sentam-se do lado esquerdo, em cadeiras. As mulheres, todas com capulanas amarradas, ficam do lado direito e se aglomeram no chão, deitadas em esteiras de palha. Elas expressam tristeza, pois assim deve ser, me dizem. Os mais jovens ficam no quarto: homens e mulheres no mesmo espaço.
Mesmo com tanta tradição presente, há situações que poderiam se dar em qualquer parte do mundo, como as brigas por bens. Os irmãos do falecido discutem com os filhos para saber quem ficará com a herança do velho militar. Em cada uma dessas brigas, os parentes votam o que deve ser feito.
Para decidir a roupa do enterro, também foi feita uma reunião. Dessa também participaram os militares. E a família não tinha poder. Ele deve ser enterrado com a roupa de trabalho. O chapéu do exército, entretanto, ficará para o filho mais velho.
Como os familiares devem ficar reunidos desde a morte até que se encerrem as cerimônias, é preciso que tenham folga no trabalho. E têm. Dependendo da empresa, os parentes de primeiro grau recebem até duas semanas. Para os mais distantes, apenas uma semana. Eva, mesmo sendo filha, ganhou uma semana só.
Por feitiço
Quando tinha 12 anos, Eva perdeu a mãe. Após a morte dela, seu pai teve outra mulher, com quem também teve filhos. Eles se separaram, mas essa mulher foi hoje ao velório na casa do falecido. Eva e sua irmã, no entanto, a expulsaram de lá. “É uma feiticeira”, grita.
Pergunto se ela tem algum poder e Eva afirma que sim. Desejava a morte do ex-marido e só foi lá para confirmar. Não sofria de verdade.
Em Moçambique há feiticeiros, que têm poder para o bem e para o mal. “Meu Deus, estou enfeitiçado!”, gritou a personagem de Mia Couto em Terra Sonâmbula. “A cabra me deitou feitiço... a puta estava com os sangues, raios a partam... grande puta: estavas menstruada!”. O escritor ainda explica: “vinha à mente a voz da crença, condenando aquele que ama uma mulher em estado de impureza. Também o português punha crédito em tais africanas maldições: nele os sangues haveriam de escorrer, transbordantes.” Em casos como esse, os enfeitiçados têm uma única forma de se livrarem da maldição, que é fazer um corte no pescoço. O problema surge quando pensamos em uma sociedade onde mais de 1,5 milhão de pessoas estão infectadas pelo HIV. As facas estarão desinfetadas?
A crença em feitiços está enraizada na cultura e tenta explicar a sociedade. Tuberculose e hérnia, por exemplo, são doenças de quem dormiu com viúva que ainda está no período de luto. E nenhum marido desconfiaria de traição se a mulher ostentar um osso de cabrito dentro de casa, mesmo que ela tenha engravidado no ano em que ele se encontrava fora da cidade. Esse osso permite que uma pessoa esteja em dois lugares ao mesmo tempo. Atualmente, muitos acreditam que esses feitiços ocorrem e são totalmente verdadeiros. Muitos outros acreditam que são apenas mitos, lendas que enriquecem a cultura moçambicana.
domingo, setembro 09, 2007
Morte do pai de Eva
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Um comentário:
Maravilhoso texto, Lu! E que experiência rica, hein?
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