Está no Código de Defesa do Consumidor: “os órgãos públicos, por si ou suas empresas concessionárias (...) são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes e seguros”. Na prática, isso não é assegurado ao usuário do transporte coletivo, principalmente de ônibus.
Pense no caminho entre sua casa e o ponto de parada de ônibus mais próximo. Quanto tempo você gasta e como são as calçadas no percurso? O ponto de parada possui iluminação, bancos para se sentar, informações sobre veículos e horário em que passam? Os ônibus circulam em intervalos regulares? Geralmente há lugar para se sentar e é possível chegar no horário a compromissos? Provavelmente, as respostas não são animadoras para os mais de 55 milhões de brasileiros que usam diariamente o transporte coletivo.
Os municípios devem regulamentar e fiscalizar os serviços públicos de transporte, delegados a empresas que os prestam por concessão. Também cabe aos governos melhorar condições de vias públicas e de pontos de parada, o que aumentaria a qualidade do transporte, mas pouco é feito. Caminhamos na contramão: a demanda pelo transporte coletivo urbano diminuiu nos últimos anos, principalmente pela ineficiência do sistema e pelas altas tarifas cobradas, gerando círculos viciosos que só pioram a situação dos usuários desse tipo de transporte. “As tarifas são calculadas dividindo o orçamento do serviço pelo número de passageiros pagantes. A elevação de preço reduz o número de pagantes. No reajuste, a ‘conta’ é dividida por um número menor de usuários, pressionando os valores para cima mais uma vez”, esclarece Marcos Bicalho, superintendente da Associação Nacional de Transportes Urbanos (ANTP).
Essa situação seria amenizada com políticas públicas de incentivo ao uso do transporte coletivo. Um bom exemplo, pouco seguido, é o de Curitiba, onde há planejamento integrado de transporte e uso do solo, além de continuidade política das ações de governo, ou seja, uma boa iniciativa não é destruída com a mudança de prefeitos. Já em São Paulo, uma das cidades mais congestionadas e poluídas do país, cinco novos corredores de ônibus (com mais de 50 quilômetros de extensão) serão construídos até 2008. Infelizmente, isoladamente, essa medida tende a não trazer resultados efetivamente benéficos. Políticas que poderiam ser tomadas em conjunto para ter melhores resultados são: a redução do preço do óleo diesel, o subsídio ao transporte de idosos e o planejamento da rede de linhas.
É claro que os governos não têm recursos disponíveis para investir o necessário, mas o que possuem é usado de formas questionáveis. “Salvo raras exceções, as políticas públicas continuam a estimular o crescimento do transporte individual e a penalizar o coletivo, sem contar com a carência de investimentos em infra-estrutura urbana para o transporte coletivo”, critica Bicalho. Além disso, o governo pouco fiscaliza o trabalho das empresas concessionárias, que como grupos privados, se preocupam essencialmente com o lucro. Os direitos do consumidor – como acessibilidade, freqüência de atendimento, tempo de viagem, lotação, segurança, sistemas de informação, estado das vias e comportamento dos operadores – são relegados ao esquecimento.
O que pode ser feito?
Os interesses em jogo são poderosos e a população é o elo mais frágil. Restringir ou encarecer o uso do automóvel, por exemplo, coloca o governo em colisão com a indústria automobilística. Combater o transporte clandestino pode causar choque com setores do Legislativo que assumem práticas clientelistas. Exigir melhores serviços das concessionárias, apesar de ser função dos governos, também causa atritos difíceis de contornar.
Como os problemas são muitos, somente em longo prazo algo vai mudar. No entanto, é direito do consumidor receber um serviço adequado e dever das empresas prestá-lo da melhor forma, com fiscalização dos governos. Entre as muitas políticas que podem amenizar a situação, Érika Kneib, arquiteta urbanista especializada em transportes coletivos urbanos, cita uma em especial: “o processo licitatório do sistema é fundamental para que os direitos dos usuários sejam garantidos. Quando o processo é adequado, o poder público exerce seu papel de gestor e fiscalizador”.
Já para Paulo César Marques da Silva, professor do Programa de Pós-Graduação em Transportes da Universidade de Brasília (UnB), a solução seria inverter as prioridades entre automóvel e transporte coletivo. “Se entendermos o consumidor de transporte como todo cidadão, então seus direitos são os constitucionais de ir e vir. E estão acima do direito individual de usar espaços públicos para fins privados”.
O lucro das empresas também costuma ficar acima dos direitos dos usuários. Elas não fazem política social e só existem se tiverem resultados financeiros positivos. Nesse ponto, é fundamental o subsídio de governos, para que o acesso não fique limitado ao poder econômico de cada cidadão. As soluções do transporte passam, necessariamente, por políticas públicas, e não por questionamentos nas relações de mercado. “Cabe aos usuários fazer reclamações e exigências ao poder público e não às empresas, que são apenas prestadoras do serviço”, esclarece Érika.
Infelizmente, a população nem sempre é ouvida. A aposentada Alice Victor de Oliveira, hoje com 70 anos e associada do Idec desde 1994, já reclamou muito do transporte coletivo de seu bairro, na zona sul de São Paulo. A partir de mudanças feitas na região, muitos ônibus não conseguiam mais passar por uma das ruas do itinerário, estreita e não adaptada para o novo volume de veículos. Com isso, o trânsito parou e os usuários chegaram a esperar mais de uma hora por um ônibus. “Mas eles resolveram a situação. Mudaram o ponto de lugar: agora fica em cima de um bueiro. É um absurdo, as pessoas podem até quebrar o pé na correria. Vamos reclamar de novo”, avisa Alice. E essa nem foi a pior situação que a aposentada viveu como usuária de coletivos. “No ano passado, entrei em um microônibus e me sentei no banco ao lado do motorista. Pouco depois, entrou uma jovem que carregava uma pequena sacola e me obrigaram a descer do ônibus (porque o bilhete não estava habilitado para passar na catraca) e me sentar após a catraca, para dar lugar à jovem. É uma falta de respeito, principalmente pela minha idade. Reclamei, mas esqueci de anotar o número do veículo e a reclamação não valeu de nada”, lamenta.
Apesar das dificuldades, o poder para exigir dos governos as mudanças necessárias está nas mãos dos consumidores. “A primeira exigência é receber informação sobre o sistema e sobre os horários, para ajudar na fiscalização. Também deve-se pedir informação de como é calculada a tarifa. Além disso, pode-se avaliar a capacitação de técnicos e gestores do órgão de transporte da cidade”, orienta Érika. E quando as reclamações não dão resultado, o usuário pode questionar na Justiça. Dessa forma, os órgãos podem ser condenados a cumprir suas obrigações e ainda pagar indenização, conforme o prejuízo apurado em cada caso.
Serviço adequado a todos
Se você é usuário freqüente de ônibus, responda a mais esta questão: quantas vezes entrou em um coletivo que possuía acessibilidade para pessoas com deficiência? Esperar qualquer ônibus é demorado. Esperar um com acesso especial, então, é um teste de paciência. Atualmente, apenas 5% dos ônibus possuem plataforma elevatória (para acesso de cadeirantes), 2% têm piso rebaixado e menos de 2% operam em corredores com plataforma elevatória.
“Não há planejamento do espaço público. As calçadas, por exemplo, funcionam como extensão do espaço privado e não respeitam necessidades especiais das pessoas”, afirma Ana Maria Barbosa, coordenadora da Rede Saci, que discute direitos de pessoas com deficiência. A pesquisadora enfatiza que há muito o que fazer para garantir acessibilidade no transporte coletivo, mas não despreza a evolução no setor nos últimos anos. Para ela, toda adaptação é bem vinda, desde que cumpra as recomendações para acessibilidade e não prejudique nenhum usuário. “Não adianta facilitar a vida de um cadeirante e dificultar a de um idoso”, comenta sobre os ônibus com piso rebaixado e escadas antes e logo após a catraca.
Em julho, o Inmetro divulgou a Portaria 260/2007, que regulamenta as adaptações que devem ser feitas na frota nos próximos anos, garantindo acesso maior. Alguns dos itens contemplados são: características da plataforma elevatória, reposicionamento de bancos preferenciais e adoção de iluminação nos degraus. Boa parte da frota, ao ser renovada, vai contemplar essas modificações. Em São Paulo, por exemplo, ônibus de piso rebaixado e até os que têm escadas antes e após a catraca (que podem ser perigosos para a mobilidade dos idosos) já estão em circulação.
Curiosidades do transporte por ônibus
» A tarifa de ônibus mais barata é a de Belém do Pará, que custa R$ 1,35. A mais cara é a de São Paulo, que sai por R$ 2,30. Mas em termos relativos ao valor da cesta básica, a tarifa de Salvador é uma das que mais compromete o bolso
» Cerca de 37 milhões de brasileiros são excluídos do transporte coletivo por falta de dinheiro para pagar tarifa, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)
» A velocidade média dos ônibus nas grandes cidades brasileiras não chega a 15 quilômetros por hora, quando não há corredores preferenciais
» A frota de ônibus no país atende mais de 55 milhões de pessoas, com menos de 100 mil veículos
* Texto também publicado na Revista do Idec 114, de setembro de 2007
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