quinta-feira, setembro 01, 2005

De lembranças

Recordava ainda muito bem da última conversa, no corredor. Ela carregando sua mochila enorme com cuidado para não acordar ninguém e ele, ainda despertando, com uma pequena garrafa de água nas mãos e uma toalha pendurada no ombro.

Trocaram meia dúzia de sussurros como velhos, muito velhos e íntimos amigos fazem, como se os dois tivessem a certeza de que se veriam novamente à noite, quando contariam detalhes do dia e dariam risadas tomando uma cerveja. Ela se despediu e ele voltou para o dormitório, para descansar da noite mal dormida. Ela esqueceu de pedir o contato dele. Ele lembrou de lhe oferecer uns doces para comer durante a viagem.

- Tchau, boa sorte.

- Brigada, pra você também, e boa viagem. Espero que sua dor de cabeça melhore.

Ela saiu e foi pegar o ônibus, não queria se atrasar.


- Ei, o que você tá fazendo com a perna esticada?

Ela não gostava de pés, mas queria tirar uma foto do seu. Era a última foto do filme, precisava queimar de alguma forma. Foi até à porta do quarto e fechou a pequena vidraça para que ninguém no corredor lhe atrapalhasse, mas ele entrou sem ela perceber. E estava do lado da cama dele... O que poderia inventar? Corou. Não conseguia pensar em nada.

- Vou tirar uma foto do quarto, para acabar com o filme.

Ele não se convenceu. Sorriu um sorriso esboçado que aos poucos se transformava no sorriso mais gostoso que ela conseguiu sentir. Convenceu-a a tirar uma foto sua. Duas, três. Era como brincadeira de criança, cada um esperando o outro se distrair para tirar mais uma foto, e outra, e mais outra. A brincadeira foi até tarde. E os sorrisos tão gostosos pareciam cada vez mais antigos, mais sinceros, mais conhecidos. Só paravam quando outro hóspede do mesmo quarto entrava para pegar alguma coisa.


Teve que abrir o guarda-chuva. A cidade em que nunca chovia amanhecera nublada e as pequenas gotas que escorriam pelo seu corpo lhe traziam uma tristeza pequenininha que aparecia escondida não sabia onde.

Pessoas borbulhavam nas ruas, onde o vai-e-vem frenético dos ônibus - que ali tinham uma ordem caótica - ilustrava seu caminho até a estação central. Ia admirando cada palavra nas placas do comércio, cada novidade, cada sentimentozinho diferente. Era a primeira despedida de todo aquele desconhecido e alguma coisa talvez sem importância ia mudando dentro dela.


Trocaram segredos que só a noite também escutou, em uma língua que só os dois podiam decifrar e que ninguém mais escutaria. Ela não costumava falar sobre o que sentia, nem sobre seus sonhos com qualquer pessoa. Demorava para confiar em alguém, mas sentia que toda a desconfiança ficara para as outras pessoas. Com ele não tinha medo, nem vergonha, nem mesmo insegurança. Todas as palavras pareciam poucas, de tanto que tinham para segredar.

As histórias dele a encantavam, assim como sua voz, seu toque, tudo que conheciam, sentiam e tinham de igual. E todas as diferenças. Sentia uma necessidade grande de tomar para si cada história que estava ali no ar, cada suspiro, cada sorriso. Sentia uma necessidade grande de guardar aquilo tudo como seu, como se fosse só seu.

Perguntou novamente o nome dele, mas ele outra vez não falou por inteiro. E de que importava também? Sabia o início, a interpretação, a tradução. O resto pertencia a um mundo que não era dela, a um sonho que o dia que vinha vindo faria ela não encontrar mais.


A chuva apertou e a menina, correndo, se escondeu embaixo da plataforma. Já estava quase na hora. Olhou bem atentamente para a cidade, de todos os lados, prometendo um dia voltar lá. Sentia-se bem, diferente, mas tinha uma vontade apertadinha de chorar. Ele agora era apenas uma lembrança e um nome que ela não sabia nem qual era de verdade, guardado num tempo já quase distante. Num tempo tão bom.

Um comentário:

Anônimo disse...

Essa viagem, essa viagem... não há nada melhor, né?

Eu vi direitinho na minha cabeça a cena inicial. Cada palavra sua, uma lembrança minha.

É engraçado, triste, bom, saudoso... essas tantas coisas boas muito boas que são tão pontuais no passado e, por mais cravadas que estejam, fazem toda a diferença em quem somos agora.

Eu sempre me lembro desses pontinhos de lembrança... e sempre sorrio sozinha.

Lindo texto, Lu.