quarta-feira, agosto 03, 2005

A vaca

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Chegou em casa eufórico. Todos estavam almoçando e adorariam a surpresa. Pediu que o carregador entrasse com cuidado, pois a vaca era feita de fibra de vidro, e ele não queria ver nenhuma lasquinha.

A casa era ampla e antiga, com uma porta de madeira de mais de três metros de altura. Logo na entrada havia um velho tapete vermelho e quadros com molduras douradas, colocados cuidadosamente separados por toda a extensão do corredor, o que dava ao ambiente um ar pouco descontraído.

- Coloque a vaca aqui, por favor – apontou para o carregador, indicando o final do corredor, de onde se avistava uma grande sala de estar, com um piano de cauda ao centro.

A esposa e a mãe, que almoçavam, saíram depressa do cômodo e correram para a sala, tentando descobrir o porquê da agitação que se instaurara na casa sempre tranqüila e silenciosa. Arrumando os cabelos presos em um coque e a longa saia azul que levantara um pouco com a corrida, Helena não entendeu o que acontecia quando viu o carregador se afastando da sala e avistou aquele bicho colorido. Um pouco atrás, apreciando o objeto com cautela que só quem já ensinou muitas gerações pode ter, a mãe de Bento estava admirada, e cansada pela corrida que ensaiara ao sair da cozinha.

- E então, o que acharam desta maravilha? – perguntou Bento sem se virar para as mulheres, acariciando sua aquisição.

A vaca era branca, do tamanho de um animal natural, com desenhos feitos à mão, por artistas russos. E Bento a adquirira em um leilão, uma perfeita obra de caridade, enfatizava. Todo o dinheiro arrecadado pela venda do objeto seria revertido para a instituição de caridade do município.

Helena ficou constrangida. Não deveria contrariar as vontades do marido, mas que excentricidade aquela! Uma vaca? E ao lado de seu lindo piano? Tentou dissuadir Bento da vontade de deixar aquele objeto na sala. Podiam devolver, pois dessa forma a instituição de caridade poderia então vendê-la novamente e mais pessoas seriam beneficiadas pela tamanha bondade do marido.

- De jeito nenhum. Não vou vendê-la por nada. E além do mais, todos em Paris já falam desta maravilha aqui. Você verá como todas as suas amigas comentarão com inveja sobre nossa bela aquisição.

Dona Querela, mãe de Bento, não comentara nada, mas gostara da vaca. Simpatizava com ela. E começou a admirá-la cada vez mais.

Um dia dona Querela avisou, à hora do almoço, que algo muito ruim aconteceria, alguém levaria grande parte da riqueza de toda a família. Helena e Bento se entreolharam e temeram pela saúde mental de Querela. Agora dera para inventar coisas...

À noite, quando se preparavam para o jantar, ouviram um grande alvoroço à porta da casa.

- Ei, ei, abram rápido! Seu Bento! Dona Helena! Corram! – gritava um dos empregados da grande casa.

Uma desgraça tinha acontecido há poucas horas. O caminhão que levava toda a produção de batatas da fazenda nos últimos quatro meses capotara na estrada. Toda a mercadoria fora saqueada pelos homens locais e o motorista se ferira gravemente.

Novamente Bento e Helena se entreolharam. Dona Querela espiava ao longe, melancólica, triste. Afastou-se e foi à sala, sentou-se ao lado da vaca, que agora chamava carinhosamente de Cândida. Ela já sabia disso, a vaca lhe avisara de tudo que ia acontecer. E fez-lhe um pedido, porque também sabia que Cândida poderia realizá-lo. Pagaria o preço exigido, mas queria que Bento e Helena tivessem de volta o sustento para os próximos meses. Não podiam perder tão enorme quantia de dinheiro, não teriam nem como comer até a próxima safra, que deveria demorar ainda muito. Acertou o acordo. Seria na manhã seguinte.

Naquele frio domingo de junho dona Querela acordou mais triste. O filho pouco notou, devido aos problemas do dia anterior e à preocupação para acertar de alguma forma a situação em que se encontravam. Helena ficou na cama até tarde e esqueceu-se de fazer o almoço para a família.

Dona Querela arrastou-se vagarosamente até a sala, apreciando cada retrato pendurado na parede do corredor, lembrando pessoas que já haviam caminhado por ali também lentamente. Aproximou-se de Cândida, confirmou que já estava pronta. Ouviu a campainha. Um banqueiro da cidade se solidarizara e trouxera auxílio para os próximos meses. Levaria a vaca como garantia do pagamento. O pacto estava cumprido. Cândida fizera sua parte e chegara a hora dela. Dona Querela ainda caminhou lentamente até o sofá e acomodou-se ao lado do piano, imaginando seu retrato ao lado direito do corredor.

Nas férias, Bento e Helena foram para Paris.

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