Guardou com cuidado as roupas no armário já roto, remoído por cupins e pintado com ar de luxo. Há anos repetia a ação, mas com a mesma obstinação com que cuidara dos trajes pela primeira vez. Sacudia-os e tinha atenção para que nenhuma parte ficasse amassada. Um cheiro bom de passado invadia o cômodo cada vez que abria o armário. Daqueles cheiros de madeira antiga, que parecem guardar parte da vida.
Sentou-se na poltrona, que nunca antes tinha sentido sua presença. Era só para os outros... Mas precisava se dar esse luxo uma única vez e esse era o dia. Sentiu o cheiro da fumaça dos cigarros e o barulho dos últimos clientes que pagavam suas contas. Colocou na boca um final de cigarro esquecido em cima da penteadeira, para passar o tempo. Deliciou-se com as formas que podia produzir no ar. Ele podia!
Os músicos já tinham se despedido. Guardava agora o traje do saxofonista, seu preferido. A serenidade da roupa contrastava com o cômodo repleto de luzes coloridas, de cartazes de apresentações antigas, dos sapatos reluzentes usados pelas dançarinas que também se utilizavam daquele camarim. O carpete era o mesmo de quando começara a trabalhar lá e as marcas de bebida estampadas na lã mostravam um pouco da sua história. O espelho gasto refletia sua cara também marcada pela idade, a mesma que consumia o ambiente.
Não podia guardar o traje outra vez. Não era isso que queria. Faltava-lhe coragem; por que nunca faria o que sempre sonhou? Deu mais uma tragada e percebeu que os clientes já haviam saído. Ouvia o ruído dos carros e das conversas do lado de fora. Sentou-se mais uma vez na poltrona. Colocara o traje na cadeira à sua frente, ao lado da penteadeira. Sentiu aquele instante como único.
Ouviu passos, que não distinguia de onde partiam. Pulou de repente ao sentir que batiam à porta e jogou o traje para dentro do armário.
- Ei, João, você ainda está aí?
Não esquecera de apagar as luzes. Orgulhava-se disso. Trancara a porta e sabia que não perceberiam sua presença se esperasse em silêncio por mais alguns instantes. Paulo gostava de ir cedo para casa e não voltaria para bater à porta outra vez.
Recompôs sua expressão fatigada e sabia que agora era a hora. Os trajes eram seus, o camarim era seu, o espelho, os sapatos, a poltrona... ah, a poltrona; tudo era só seu. Jogou a bituca de cigarro no chão. Seria mais uma marca na lã já corroída do carpete. Mas essa ninguém veria. Tinha certeza disso.
Pegou o isqueiro. Não encontrou outro cigarro. Queria mais um trago pra lhe dar coragem. Pegou cuidadosamente o traje do saxofonista. Era seu número, sempre soube disso. Ficaria perfeito. Acendeu o isqueiro e cuidadosamente, como sempre cuidara de tudo aquilo que nunca fora seu, aproximou a chama do traje. O colorido do camarim ficou superficial com as chamas, que consumiam uma vida inteira. Ainda com cuidado colocou o traje na poltrona, os dois agora de um vermelho intenso. Sentou-se na cadeira em frente à penteadeira. E começou a tirar a maquiagem.
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